O problema do Alan Moore é que ele é um péssimo mágico.

Eu cresci pelas beiradas, onde esfria mais cedo. É por onde aprendi a comer as comidas mais quentes. Caminho converso e conheço por estradas becos e vielas e escuto e guardo comigo. Gosto de escrever porque é sempre tudo mentira e o grande problema da escrita é que em toda mentira cabe um pouco de verdade. 

Ultimamente tenho escrito, ilustrado um livro, planejado vinhetas animadas pra um documentário e letreiros pra outro. Também tenho tentado me manter mais fisicamente ativo, aprender a plantar, construir e me movimentar melhor. Tenho lido muito, pensado muito e fumado uma quantia moderada de maconha levando em conta minha vida até aqui. E pode ser que isso tudo seja mentira.

Talvez eu precise de um pseudônimo: Jaquinho Pessoa. Enfim, escrevo bobagens, mentiras e delírios. Dia desses assisti ao recital de uma pessoa que me ajudou com a trilha do Resigno e logo depois de apresentar cada uma de suas músicas, de uma maneira muito singela e gentil ela falava ao microfone: espero que gostem!


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A primeira vez em que alguém me explicou um devir eu quis dar um soco no Deleuze. 


A Karina vivia falando de yoga e meditação que era isso e aquilo e aquele outro e não sei que lá e eu nunca dava muita bola. Normalmente a Karina exagerava um pouco as coisas. Demorei a entender que eu precisava duvidar um pouquinho dela pra ajustar as expectativas. No começo eu nem queria ser amigo da Karina. A essa altura eu já tinha aprendido a distinguir bem direitinho quem vinha e quem não vinha do dinheiro. Ela vinha do dinheiro e se tornou uma das minhas amigas mais importantes.

Nunca me dei muito bem com o pessoal do dinheiro. Tenho um pouco de preconceito com gente que estudou em colégio particular nos anos 2000. Eu cresci na rua né, andando com ladrão e brigador, só tinha uma escola na minha cidade e eu não faço ideia de como um texto sobre yoga chegou até aqui. O ponto é: essa mulher vivia falando que yoga era a melhor coisa do mundo e ela vivia falando um monte de outras coisas também que não batiam cem por cento com a realidade e ai eu demorei um tanto a acreditar. 

Agora eu faço yoga, resolvi dar uma chance pra coisa. Funciona. 


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xis-coração-partido


Nas primeiras mordidas eu não entendo direito

tem alguma coisa diferente?

não, á igualzinho antes, não vai mudar nada

mastigo mais um pouco e alguma coisa me atinge

tá diferente sim, eu não quero esse, 

quero o de antes

mas não tem nada diferente, ainda é a mesma coisa

eu sei que não, antes, quando eu mastigava, nada sumia

antes, esse gosto na boca não era de ansiedade

antes, comer esse lanche não me deixava em pânico

tem certeza que não tem nada diferente?

sim, os ingredientes são os mesmos

e não mudou nada no preparo?

mudei... mas não queria te falar ainda

e o que mudou?

tirei um pouco do afeto

e os corações não estão mais inteiros

eu parti o seu coração

e aí eu sinto o gosto de todas as partes

todos os cacos, estilhaços, restos

a próxima mordida mal desce pela garganta

e com muita força engulo chorando de tristeza

sigo comendo assim por um bom tempo

até que mastigo com raiva

com medo, com dor, com nostalgia e com mais tristeza

mastigo com compreensão e com vontade de morrer

mastigo com vontade de matar também, mas essa eu escondo

não pega bem dizer essas coisas mesmo que seja verdade

na verdade a impressão que eu tenho 

é que ninguém gosta muito de verdade

tem um gosto amargo e nem sempre combina com a comida

bebo dois ou três goles de mentira pra assentar

e não funciona 

eu não gosto de mentira

pago as minhas contas com ressentimento e me retiro



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Essa não é uma ideia ruim de livro, um conjunto de delírios. Uma série de textos muito profundos e cuidadosos sobre os mais diversos temas, mesmo que a maior parte deles seja sobre a mesma coisa também. Pequenos trechos de uma continuidade que simplesmente não existe. Mas que deseja ser percebida. Uma espécie de livre associação literária sem qualquer compromisso com a realidade, a ciência, a moral ou qualquer outra coisa. Apenas texto, cru. Queria ser visto ao longo da minha vida inteira e conheço poucas pessoas que me conhecem tanto assim. Materialmente, através do tempo. A verdade é que essa coisa toda de Hegel e Marx tem uma sutileza que eu demorei um pouco à perceber porque é divinação, é profecia, é mágica ao mesmo tempo em que também é uma conjuração de representantes de classes e acho que esse é o meu maior problema com a política, a representação. 

Toda a linguagem da política representativa aparece como uma denúncia contra ela mesma, mas por algum motivo gente de mais insiste em continuar agindo dentro dessa lógica, porque ela parece boa, mas se teve uma lição que eu aprendi à duras penas é que ser e parecer são coisas bastante diferentes. Temos construído uma política ao redor de como as coisas se parecem e não ao redor de como as coisas são e acho que esse é o grande salto do materialismo na hora de compreender a sociedade e entender seus movimentos externos. Mas uma aplicação interessante dessa perspectiva também surge ao olharmos historicamente para o indivíduo, ignorando as suas subjetivações e percebendo ele como um sujeito histórico. 





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Meu pai disse que esse é um texto para pessoas inteligentes. 


Tá, mas e o Lula, será que o Lula é feliz? Será que o Lula acorda de manhã com um sorriso no rosto e se ele acorda sorrindo, ele acorda sorrindo por quê? Ele sorri porque a economia cresce? Ele sorri pelos investimentos na cultura? Ele sorri pelos genocídios em curso no brasil? Ele sorri pelo epistemicídio dirigido pelo estado? Ele sorri pelo povo baleado pelas forças de segurança? Ele sorri pelas lideranças indígenas assassinadas? Ele sorri enquanto ocupa o papel de quem dirige esse enorme trator de moer carne que a gente chama de estado brasileiro. Ele sorri enquanto desvia o trator dos militares, dos latifundiários e dos burgueses e passa por cima do povo sem dó. Povo ao qual a dó faz tanta falta que por vezes não é capaz de sentir dó de sí mesmo! Povo que acredita numa versão triste e secular de uma teologia da prosperidade empobrecida, que não é capaz sequer de ser devota a algum tipo de deus, uma teologia da prosperidade dedicada a uma prosperidade abstrata que só beneficia aos lideres dessa igreja idiota que a gente chama de estado. Uma prosperidade pela qual trabalhamos jornadas de trabalho exaustívas que corroem o nossos tempos, nossas vontades, nossas energias, nossos corpos e nossas imaginações. Viva! O PIB SOBE! TRABALHEM MAIS PRA QUE ELE SEJA MAIOR! VAMOS TER MAIS CARROS MAIS NOVOS E JOGAR OS VELHOS NUM LIXÃO! VAMOS EMBALAR MAIS COISAS, PRODUZIR MAIS PLÁSTICO E DESCARTAR TUDO NO LIXÃO! VAMOS NOS DEDICAR A PRODUZIR MAIS DE QUALQUER COISA, NÃO IMPORTA O QUE, DESDE QUE PRODUZA, O QUE FOR VELHO ATIRAMOS NUM LIXÃO! Se o Lula, calçando o sapato de quem  manda pisar na cabeça do povo, vestindo as roupas de quem manda pisar na cabeça do povo, negociando com quem manda pisar na cabeça do povo, pra decidir com que força e de que maneira vai pisar na cabeça do povo tá feliz, o Lula merece, com todo o respeito, que o povo lhe rasgue a cabeça e cuspa no seu cadáver. Porque qualquer um que fica feliz pilotando uma máquina dessas só pode ser um desgraçado incapaz de qualquer tipo de humanidade. 

Agora, vamos supor que o Lula tá triste, se ele tá triste, o que é que esse merda tá fazendo lá? Chorando enquanto passa o trator por cima das favela? Lamentando que a policia assassinou mais uma cacetada de gente de ontem pra hoje? Eu imagino o Lula limpando as lágrima com um lencinho enquanto um desgraçado passa fome porque nasceu na hora errada, no lugar errado e das pessoas erradas. Se esse desgraçado fica triste ao dirigir essa máquina porque é que ele não tá fazendo qualquer outra coisa? Porque que ele não tá sabotando essa merda de máquina de todas as maneiras possíveis? Se ele quer mesmo tanto que o mundo seja melhor, porque é que ele não tá fazendo todo o possível pra isso? Porque é que ele não tá parando essa merda de máquina? E se ele não o faz, porque é que deixamos que não o faça? Porque é que não lhe imploramos que destrua tudo? Porque é que não desejamos verdadeiramente o fim dessa sociedade independente das consequências? Porque é tão importante pra gente que os conservadores não chorem? Porque é que a gente liga se os milionários vão ficar bravos? Essa merda só da problema, a gente já sabe, toda a vez que uma quantia muito grande de poder é concentrada alguma coisa ruim acontece. Uma bomba atômica é um monte de poder concentrado, um governo é um monte de poder concentrado. E se a melhor alternativa é um cara que fica triste enquanto passa o trator por cima de biomas inteiros, intensificando a crise climática e as suas consequências em todo o território que ele governa, a gente vai muito mal. E a gente vai acabar de novo no pior.

Ou a gente destrói a máquina ou a máquina vai distruir a gente. E a gente precisa atacar de todos os lados, com todas as forças em todos os tempos. 



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Lágrimas escorriam dos olhos que olhavam sem objetivo. Na televisão passava um programa qualquer e eu observava das escadas. Nenhuma palavra teria resposta. Nada seria comunicado. Apenas mais um dia. 

De tempos em tempos lhe davam banho. Trocavam suas vestes. Mudavam sua pose. A resposta era sempre a mesma. Silêncio e lágrimas.

Uma estátua de sangue, carne e osso. Mistura confusa entre símbolo, memória e dever. 



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Eu venho de um lugar, onde as pessoas são ensinadas a confundir miséria com abundância. Confundir presídios de alta tecnologia com moradia de qualidade. Confundir uma geladeira cheia de produtos industriais com abundância de comida. Confundir uma lavoura com miséria. Confundir comer da terra com pobreza. Confundir ser bixo com ser ruim. Confundir resumir com conhecer. Confundir chorar com sofrer. Confundir sorrir com gostar. Confundir aguentar com ficar bem. Confundir um só com infinito.




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Tem gente no mundo, que não merece nem passar fome.




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Um doido me parou na rua e meteu essa.

- Mas escuta aqui um pouquinho, rapidasso! E se o defict de atenção for uma qualidade pra qual o capitalismo seleciona? E se a gente criou um mundo inteiro onde a melhor maneira de você estar vivo nele é se você não ligar pra nada! É só você não segurar nenhuma coisinha por nenhum tempo, nunca, de maneira nenhuma com a sua cabeça. O melhor jeito de andar nessa selva esquisita de verme mental, parasita, propaganda e marketing é ocê simplesmente desativar um pouquinho de cada um dos sentidos e fazer o possível pra se manter anestesiado do mundo ao seu redor. Vai num lugar barulhento? bota um fone! é até bom porque ai ninguém te incomoda. Tá cansado? Vê um filminho, um seriado! daqueles com tudo bem explicadinho pra tu saber bem das coisa, é até bom que ai tu não fica pensando em nada. 

- E se esse sofrimento todo que tu vive é o que te garante que tu tem um apartamento na cidade pra morar? E se não der pra morar numa cidade sem esse sofrimento todo? E se o ponto de uma cidade é que é o sofrimento que sustenta ela? E se esse prédio só existe porque os trabalhadores são explorados? E se esses computadores só ligam porque trabalhadores foram e são escravizados? E se tu só bebe o teu refrizinho porque o planeta é, está e continua sendo poluído? E se a cidade é um produto que só pode surgir do sofrimento e da desumanização da vida? E se a tecnologia, pra além de um facilitador do trabalho também for uma ferramenta de desumanização? E se o conforto for morfina? E se o conforto for morfina? E se o conforto for morfina? 

- Tu, com essa roupinha bonita ai, tu vive uma vida que só é possível com anestésico. Tu não te agarra a nada, não te prende a nada, não faz força pra nada. Tu só anda pelo mundo seguindo o fluxo pelo qual a cidade te empurra e é sempre bom e sempre gostoso e sempre confortável. As vezes tu vai parar fumando com teus amigos da rua, mais ou menos protegidos em uma casinha de salva-vidas na beira da praia em Itajuba II. As vezes, tu vai parar fumando com um esquisito que parece que veio da Jamaica na Coronel Pedro Osório em Pelotas. As vezes, tu vai parar fumando escondido dentro de um quarto. Muda o lugar, muda a coisa que fuma, o que não muda é o desespero, o que não muda é a falta de um lugar no mundo que só sente quem acha que viajar, ver amigos e se divertir é coisa de quem tem muito dinheiro e não de quem tem muito de todo o resto.

- Agora olha aqui pra mim e me diz o seguinte: E se essa miséria toda não for apenas o resultado direto de uma maneira individual e coletiva de ver e lidar com o mundo? E se essa tristeza toda, se esse mal estar todo dessa civilização for resultado direto dela, do seu tamanho, das suas possibilidades e do seu modo de existir. E se começar de novo for simplesmente muito melhor, muito mais fácil, muito mais divertido e muito mais engrandecedor? E se todo mundo só decidisse largar tudo de mão, aos pouquinhos, nem precisa ser todo mundo junto, a gente vai largando de mão. Foda-se essa merda dessa bolachinha, ninguém, namoral, ninguém precisa poder comer a mesma bolachinha em todos os lugares do mundo. Amigo, se tu não consegue comer a comida dos chineses, talvez você não devesse ir pra china mesmo. Sabe, deixa as pessoa vive onde da pra viver, do jeito que da pra viver, para com essa merda de botar ar condicionado em tudo cara! Porra se não dá pra trabalhar nesse lugar de tão quente que é ali, que ninguém trabalhe ali! Se não da pra morar nesse lugar sem que seja uma grande merda de cuidar, que ninguém more e se quiser morar que cuide. Deu de obrigar quem vive com menos a cuidar das coisa de quem vive com mais. Quem vive com mais que se foda! Se precisa envenenar a água pra ter coleção de roupa nova na renner todo ano que acabe as coleção de roupa nova! Pelo amor de qualquer coisa gente! Prestenção! Paara! Não pode que vocês seja tão burro assim de achar que da pra viver na cidade, comprando as coisa da cidade, fazendo as coisa da cidade, no ritmo da cidade, usando as marca da cidade, as palavra da cidade e achar que vocês vão construir o ecossocialismo! E aí assim! Ou tu diz assim "não, eu sou uma pessoa da cidade mesmo, eu não conseguiria viver uma vida onde eu tenho que me envolver nos trabalhos que envolvem a manutenção da minha própria vida! eu só consigo ser uma engrenagem numa máquina bem calibrada de destruição psíquica, física e espiritual. O resto é muito difícil pra mim, eu morreria se precisasse ser responsável pela minha própria segurança enquanto caminho pelo mundo sem a proteção de um carro, de um ônibus ou de uma polícia e eu tenho medo de mais da morte pra pensar em construir outro tipo de vida! Sequer imagino um mundo melhor! Acho utopias idiotas! Não vejo motivos pra imaginar um mundo melhor! Só acho muito bonitas as histórias do passado contadas pela perspectiva de quem destruiu todas as possibilidades além dessa!" ou tu para com esse papo de querer dizer que é radical. Tipo assim, pelo menos vamo nos respeitar de deixar bem claro pra todo mundo o que a gente tá fazendo. Liberal de merda. 

E ai eu olhava pra esse cara e não fazia ideia do que dizer pra ele de volta. Porque o desgraçado fazia sentido. Por sorte, ele não tava muito bem vestido, claramente não tinha muito dinheiro. Até tinha viajado bastante mas nunca pra muito longe, então não deveria conhecer muitas coisas. Já tinha andando entre ladrões e mendigos e deixou bem claro que conhecia a maldade e que era bom por escolha. Nunca tinha feito nada de muito importante na vida além de ter tido uma conversa transformadora aqui ou acolá com algum conhecido. Ganhou alguns prêmios com o seu trabalho, mas nunca o suficiente pra que pudesse viver sem trabalhar e com bastante dinheiro. Era um vagabundo e todos sabemos que os vagabundos é que devem estar errados, certo é quem trabalha. A gente aprende isso desde a escola e é o que se costuma dizer pra polícia quando a gente não quer apanhar: "sou trabalhador pôh!" Olhei no fundo dos olhos do maluco e disse: 

- Pode crer! 

E consegui ignorar sem precisar considerar qualquer coisa do que ele havia dito. Não tenho tempo pra isso. Tô atrasado pro trampo e preciso dele pra pagar as minhas parcelas.



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sabia o quão duro era prometer. se agarrava em suas promessas. firme. forte. até que veio a enchente, a enchente leva tudo, a enchente derruba, a enchente empurra, a enchente sobe, a enchente entra, a enchente não para - é soltar ou morrer                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              quebrou                                                                                                                                                                                                                                                                  só pode levar sua parte - sem remendo                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        segurou por muito tempo      e      soltou









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