A utopia serve para que sigamos caminhando.

 Me impressiona sempre a capacidade com a qual vejo, uma série de sujeitos discutindo as anarquias sem saber exatamente do que as coisas se tratam. De tempos em tempos tenho vontade de escrever sobre o tema. Sugerir leituras, autores, apontar eventos históricos, bons livros, boas músicas e todas essas coisas. E não é isso que eu vou fazer nesse texto. 

Escrevo esse texto pra falar da vida que eu vivi, da que eu vi e da que eu quero. Cresci no campo, meus pais se separaram cedo, fui abusado sexualmente na infância, nunca me faltou nada além de cuidado, carinho e atenção. Sai da casa do meu pai aos dezesseis anos pra estudar e aos vinte e sete tô voltando pra tentar construir algo. 

Na rua, aprendi sobre solidariedade muito mais do que em qualquer outro lugar. Na faculdade aprendi a ler umas palavras difíceis e a analisar as situações com mais frieza. No morro, aprendi que toda teoria quebra quando chega na realidade sem uma relação com a prática. No trabalho aprendi que o que vale mesmo dentro do capitalismo é a nossa habilidade de abandonar tudo o que somos e queremos em nome da manutenção do próprio capitalismo, que propicia uma série de confortos que só fazem sentido quando a gente olha a coisa toda de dentro. Felizmente eu sou um marginal. 

Aprendi a olhar o mundo pelas frestas, ver por detrás das cortinas e não gostei do que vi. E eu sei que não preciso descrever o quão estúpido, cruel, mesquinho e feio é esse mundo que nos vendem pra que alguém entenda que o modo como as coisas estão não é bom pra maior parte de quem habita esse mundo. Eu não quero fazer parte disso. Quero outra coisa. 

Quero um mundo sem presídios, sem contratos, sem excessos, sem mineração, sem monocultura, sem exploração, sem autoritarismo, sem dinheiro, sem fronteiras, sem pressa. Quero um mundo onde eu possa andar, correr, dormir, comer, sentir, colher, agir e crescer de acordo com as minhas vontades e necessidades. E há de se pensar sobre o que é de fato necessário, sobre o que nos traz vida e nos faz viver pra além do conforto que surge a partir da exploração do trabalho alheio.

Quero um mundo onde eu saiba de onde veio a minha comida, que eu conheça quem faz as minhas roupas, quem concerta minhas ferramentas, quem se beneficia do meu trabalho e onde eu tenha tempo de conviver com essas e as outras pessoas de quem eu gosto. Sou anarquista porque amo todo e cada um dos meus iguais e porque desejo a eles a maior quantia de liberdade possível. Sou anarquista porque acredito na capacidade que todos os seres vivos possuem de se adaptar, de aprender e de se transformar. Sou anarquista porque não quero libertar ninguém, quero que possamos nos libertar juntos. Sou anarquista porque não sei como construir esse mundo que quero e sei que ele não pode surgir a partir de um comando. Sou anarquista porque não quero impor a liberdade à ninguém, quero apenas que os que a desejam tenham as condições necessárias para desfrutar dela. Sou anarquista porque amo incondicionalmente e não tenho vergonha disso. 

Ano que vem usando de todos os recursos que tenho a minha disposição quero começar a trabalhar nas fundações do que sonho um dia conseguir transformar em uma zona autônoma. Um lugar pequeno com habitação, comida, energia e água pra tantas pessoas quanto possível. Ainda não sou capaz de me apartar completamente do resto do mundo e talvez nunca seja, mas quero ficar o quão longe possível. Quero poder trabalhar pra quem não pode pagar pelo meu trabalho. Quero poder ser feliz sem me preocupar com o horário. Quero viver da maneira mais anarquista possível e quero o mesmo pra quem também quiser. Sou anarquista porque admiro a luta dos que vieram antes de mim e dos que estão lutando agora.


Comentários

  1. "nunca me faltou nada além de cuidado, carinho e atenção" pega demais porque são coisas tão essenciais pra uma criança. Às vezes ter outras faltas prejudica menos do que essas, sabe? Sinto muito que você tenha passado pelas coisas que passou.

    Não me entendo como anarquista, embora me identifique muito com as suas crenças. Sinto que me falta estudo para conseguir me chamar assim. Também não consigo me chamar de socialista ou comunista. Simplesmente me falta estudo. Mas entendo que meus ideais são inteiramente anticapitalistas, embora eu tenha muita dificuldade em acreditar que, em vida, verei a queda desse sistema.

    Espero que consiga realizar seu sonho ou pelo menos chegue o mais perto dele possível.

    Feliz 2024.

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    1. Oiii

      Boto muita fé no lance de estudar e acho importante mesmo, inclusive não apenas estudar o que a gente gosta ou quer ser mas também o que a gente não gosta e não quer pra poder entender o que a gente combate. Também não sei se vejo em vida o fim do capitalismo, mas espero e trabalho pra poder ver o começo de alguma coisa nova.

      Espero que as coisas estejam bem contigo e se não estiverem que elas fiquem e permaneçam. Agradeço pelas palavras! Feliz 2024!

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