Não é de hoje que eu aponto que racismo precisa ser assunto de branco.
O conceito de raça como a gente entende hoje em dia é um negócio super recente na história da humanidade e foi elaborado a partir da construção de um coletivo entendido e denominado por algumas pessoas como branquitude. Esse coletivo tem limites imprecisos e suas expressões mudam bastante de acordo com fatores geográficos e econômicos. Ao mesmo tempo, sua expressão independente de fatores geográficos e econômicos carrega em seu cerne a ideologia racista. A ideologia racista é o elemento constituinte da separação humana entre os brancos e não-brancos. O racismo é uma expressão da ideologia racista - entendendo ideologia como o conjunto de elementos que formam a visão de mundo de um sujeito - e ele pode se manifestar de maneiras conscientes e inconscientes. A expressão sociopolítica do racismo é o que se convencionou chamar de racismo estrutural, um conjunto de faltas, dificuldades e impedimentos de ordem pública que fazem parte da fundação das sociedades racializadas, que organizam os mais variados campos da vida em sociedade e que afetam de maneira positiva as pessoas entendidas como brancas em detrimento das populações não-brancas.
O racismo é o elemento comum que faz com que um sujeito que nunca roubou nada seja seguido por seguranças em lojas quase sempre que pisa em uma e com que outro que rouba ocasionalmente nunca tenha se percebido vigiado. Também é o racismo que faz com que o segundo que não se percebe vigiado acredite que a vigilância não exista mesmo quando o primeiro à descreve.
Em um indivíduo a branquitude se expressa como quase tudo a partir da fala, da produção de sentido e de uma certa perspectiva que entende a sí mesmo como norma em todos os aspectos que compõem o entendimento de humanidade. Para um sujeito formado dentro de um sistema ideologicamente racista o corpo branco é o corpo normal, a fala branca é a fala normal, a religião branca é a religião normal e assim por diante. Para o sujeito que carrega nas entranhas o germe do racismo as vantagens que ele possui dentro de um estado racista são vistas como a norma, o racismo pode até escapar pela boca mas são os olhos e os ouvidos que ele controla. Por vezes a ideologia racista pode até ser capaz de permitir que um sujeito de dentro da esfera da branquitude perceba o efeito negativo da ideologia racista no negro e é a mesma ideologia racista que as vezes faz do branco psiquicamente incapaz de aceitar que ele talvez não esteja onde está porque mereceu.
Para o sujeito que carrega o racismo em si seu próprio racismo é invisível. Afinal ele não compreende o outro como diferente, compreende o outro como fora do normal - como errado. Como também não compreende o outro como indivíduo que faz parte de um coletivo. Para o sujeito que carrega o racismo o outro é sempre uma expressão do grupo do qual faz parte e apenas isso o sujeito que carrega em sí o racismo tem dificuldades em diferenciar os indivíduos que entende como não-brancos. E o racismo é muito mais do que a sua expressão individual.
O racismo é um conjunto de práticas históricas que resultam em um modo de vida e muita gente já escreveu muito mais e muito melhor do que eu sobre isso. Tem o Franz Fanon, tem o Martin Luther King, tem o Malcon X, tem a Angela Davis, tem a Conceição Evaristo, tem a Bell Hooks, tem o James Baldwin e eu tô jogando aqui pra cima os nomes que tão mais na boca do povo e é um pouco engraçado notar a internacionalidade deles O movimento negro brasileiro tá aí a uma cota também e mesmo na internet a gente vai ter figuras como a Anielle Franco que também tá na política institucional, o Chavoso da Usp e o Jones Manoel que são figuras de fácil acesso. Acredito que todas as universidades possuem em seus acervos pelo menos uma pesquisa ou outra que elabora a partir das mais variadas perspectivas sobre o tema. O que eu quero dizer é que não é difícil saber mais sobre as organizações da ideologia racista se você quiser de fato saber mais sobre ela, principalmente se você sabe ler ou tem acesso à internet.
E é ai que vem a expressão do racismo que mais tem ocupado a minha cabeça no momento: percebo nas pessoas racistas, mesmo as mais progressistas uma dificuldade gigantesca de se perceber como sujeitos em um sistema racista; uma dificuldade em admitir o peso da posição que ocupam; uma dificuldade em constatar, aceitar e compreender a realidade do sistema racial que organiza a sociedade como um todo. Percebo nos sujeitos racistas uma certa negação de que a branquitude possa de qualquer maneira ter informado ou feito parte da sua formação coletiva. Percebo naqueles afetados desde cedo pelo racismo uma certa dificuldade de perceber esta própria afetação. Infelizmente não existe um óculos ou um fone de ouvido que seja capaz de desfazer as ilusões impostas à esses sujeitos ao longo do cultivo de suas vidas. E as perguntas que me faço como alguém que acredita no potêncial de transformação dos seres humanos são as seguintes: Como um sujeito percebe o racismo em si? Essa percepção é o suficiente para que se inicie um movimento de transformação? Como um sujeito remove o racismo de sí? Como esse processo pode ser feito de maneira coletiva?
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Este texto não consta.
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Este texto não consta.
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Ficção em primeira pessoa.
A algumas semanas atrás assisti embasbacado um tio falando da escravatura e de seus reflexos contemporâneos com um tom de encanto na voz que um sujeito melhor do que eu talvez tivesse respondido com um soco. A coisa toda ficou um pouco mais bizarra quando ele decidiu explicar para uma mulher negra o quão legal eram as charqueadas e o modo como o trabalho escravo era organizado no local e eu me peguei ali, assistindo aquela cena bizarra sem oferecer nenhuma resposta. Nesse dia, a esposa do sujeito interviu pedindo à ele que se retirasse e nas últimas vezes que o vi ele se resguardou à só fazer comentários racistas com relação às populações indígenas.
Algumas semanas atrás assisti embasbacado um tio falando da escravatura e de seus reflexos contemporâneos com um tom de encanto na voz que um sujeito melhor do que eu talvez tivesse respondido com um soco. A coisa toda ficou um pouco mais bizarra quando ele decidiu explicar para uma mulher negra o quão legal eram as charqueadas e o modo como o trabalho escravo era organizado no local e eu me peguei ali, assistindo aquela cena bizarra sem oferecer nenhuma resposta, a mulher apontou que achava a coisa toda das charqueadas um tanto insensível com a escravidão. E a esposa do sujeito interviu pedindo à ele que se retirasse, nas últimas vezes que o vi ele se resguardou à só fazer comentários racistas com relação às populações indígenas.
Talvez eu seja mais um dos desgraçados que carrega a fragilidade branca por cima dos ombros. No aniversário da minha noiva um outro tio decidiu fazer uma série de comentários racistas e eu senti em mim a ambiguidade. Um desconhecido da minha idade talvez não tivesse terminado a primeira piada sem ser atingido por um soco. O irmão do meu pai falou tudo o que queria sobre a aparência de pessoas negras na minha frente sem ser interrompido. Quando apontei o desconforto, a feiura e a seletividade das palavras ele seguiu com uma justificativa igualmente racista, minha esposa se retirou e eu ainda fiquei ali por um tempo com um misto de surpresa e raiva até decidir também me retirar da interação. Minha tia é mulher e bater em uma mulher racista talvez seja predicado da minha noiva e não meu. A tia tentou concertar o racismo com uma versão mais amigável de racismo e eu honestamente não soube como responder.
Eu acho a coisa toda ultrajante e me causa um tipo muito específico de repulsa que se choca diretamente com o mesmo pensamento todas as vezes: báh, fazer o que eu queria aqui vai se pá vai dar um merdão pro meu pai. E sei lá meu pai justifica um pouco a ignorância e a postura deles com o histórico da família e ao mesmo tempo em que sei que as experiências de formação são parte importante na formação de um sujeito também sei que essas são todas pessoas adultas. Conheço um monte de gente que cresceu em ambiente merda e que nem por isso se comporta como um pedaço de bosta e talvez essa tenha sido a gota que faltava pro meu copinho transbordar.
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Tava conversando com a Wal esses dias sobre essa coisa toda e quando perguntei pra ela sobre as maneiras de se libertar um opressor ela me disse de maneira categórica: Você não pode ser um oprimido. Demorei um pouco a entender e ela me disse que pra ouvir algo de alguém em primeiro lugar é necessário respeito e é costumas que alguém que ocupa uma posição de opressor não respeite alguém em uma posição de oprimido. E fazendo a volta pra pensar, sinto que quem ouvi apontar pela primeira vez o racismo em mim, foi Isis e acho mesmo que uma coisa que eu sempre tive por essa pessoa foi respeito. Lembro do choque e da grande sensação de "eu não tinha visto isso" que bateu em mim e ai me surge a pergunta, como é que se constrói respeito. Será que alguém já escreveu sobre isso?
Quanto mais o tempo passa mais eu percebo o tamanho das coisas que não sei, existe um sem fim de informações, ideias e estruturas de pensamento que desconheço e a cada passo em frente percebo com uma mistura de animação e terror o tamanho da escuridão. Falanges avançam em direção os limites do conhecimento humano sem a devida conexão com seus arredores e também com seus campos mais distantes. A inteligência oferece ao sujeito a armadilha de acreditar que se pode saber de tudo sozinho e não existe ignorante mais complicado do que aquele que acredita que não precisa saber de mais nada. Talvez pra além de se construir o respeito seja importante construir a humildade, será que alguém já escreveu sobre isso?
Parece que quanto mais leituras deixo pra trás maior o número que se faz necessário. Me sinto pequeno e incapaz e dentro da minha pequenez e da minha incapacidade faço o que posso. Falo sobre o que acredito ser importante com a complexidade da qual sou capaz nos espaços onde sinto que consigo ser ouvido. E você, qual a sua estratégia?
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