Uma noite na Taberna 2.

Achei um pouco engraçado quando o Giordano me chamou de romântico no meio de uma reunião de roteiro e disse que fazia sentido que o episódio de romance da série na qual a gente trabalhou juntos ficasse pra mim. No final das contas ninguém gostou muito do romance que eu escrevi e o episódio acabou bastante diferente do que eu tinha inicialmente imaginado, quase o suficiente pra minha assinatura não fazer muito sentido no roteiro mas as coisas são como elas são e o meu nome tá lá. No dia em que esse negócio sair posto aqui as duas versões. Eu li uma noite na taverna quando era adolescente e achei tudo péssimo, horroroso e um pouco deformado e patético. Ai o tempo passou e eu cresci e de repente aquela música dos Tribalistas onde eles dizem que o amor é sujo e tem cheiro de lixo começou a fazer cada vez mais sentido. 

Eu sempre tive aspirações literárias e acho que esse blog inteiro é um pouco uma prova disso, não faço ideia se escrevo bem mas sei que escrevo bastante. Nunca escrevi nenhuma grande história e na verdade todas as minhas tentativas de escrever a mesma coisa por bastante tempo até agora não deram muito certo.  Gosto muito de escrever as coisas conforme elas me surgem e sinto que é um pouco por isso que me perco um pouco enquanto escrevo. Tenho tentado escrever romances faz um tempo e a coisa sempre desanda mais ou menos um pouco depois do começo, acho que escrever é em geral mais difícil do que parece. A partir do mês que vem quero me dedicar ao método de escrita que sei que funciona pra que eu escreva histórias longas, tenho um outline escrito pra uma história de horror e comédia já a uns dois ou três anos e nunca consegui me dedicar muito bem a ele, agora acho que vai. 

Dito tudo isso, já escrevi muita coisa esse ano em formatos não muito variados, pensei em publicar algumas delas mas acabei ficando com vergonha. As vezes me pergunto se sou só eu ou se as outras pessoas sentem vergonha também. Esses dias reli um dos meus mangas favoritos e ele não tem nada muito a ver com nada do que tá escrito aqui mas foi quando tentei escrever sobre ele que decidi postar essas histórias aqui então vou intercalar elas com prints não relacionados de algumas páginas. O quadrinho chama Claymore e foi escrito e ilustrado pelo Norihiro Yagi.

Ficam aqui alguns experimentos literários sem nenhuma promessa de qualidade, mas se você ler, eu gostaria de saber as suas impressões. 





I

Assisti House pela primeira vez com um tio do qual eu gostava bastante até ele ameaçar quebrar o braço do meu irmão mais novo na minha frente e dizer pra ele que a nossa mãe ia morrer quando eu tava na quinta série. Não lembro dos detalhes mas eu sei que eu sempre fui uma criança violenta, naquele dia ele não se atreveu a colocar os pés dentro de casa até que a mãe dele chegasse. Naquela casa, era comum eu ser tratado como um mentiroso. 

Naquela época minha tia nunca reagia a nenhuma das provocações que nenhuma das pessoas fazia à ela, mas eu era uma criança e quando fiz os mesmos comentários que todas as pessoas ao redor faziam o tempo todo ela me bateu com uma sacola de compras e estourou uma ou duas caixas de leite na minha cara. Eu não tava certo nesse dia, mas não lembro de isso ter acontecido com nenhuma outra pessoa antes ou depois. Pouco tempo depois disso minha mãe me deu a única surra que tomei dela na minha vida inteira por conta de alguma coisa que minha avó disse, na época eu não entendi porque apanhei. Fui embora daquela casa quando percebi que o único jeito de me defender seria com violência e que ninguém nunca acreditaria que eu tava me defendendo.

Depois disso vi a série de novo na televisão aberta, alguns episódios picotados, como é acompanhar qualquer coisa na tv aberta. Eu nunca liguei muito pra parte da medicina, eu só gostava muito do House e de como ele navegava as interações com pessoas que duvidavam dele quase que o tempo todo enquanto vez após vez se provava certo. E assim como eu, o House também não parecia muito feliz, mesmo que ele se divertisse bastante. 

Essa não é uma coisa sobre a qual eu falo muito mas eu tenho problemas obsessivos. Raramente minhas obsessões expressam os sintomas irracionais característicos de um transtorno, mas de vez em quando acontece. No último ano me coloquei em uma situação onde permiti e incentivei comportamentos obsessivos em mim mesmo e como é de se esperar com essas coisas isso não me fez bem. Passei alguns bons meses incapaz de controlar os meus próprios impulsos e eu não sei explicar o quão dolorido é pra mim quando isso acontece. Eu raramente perco o controle, porque eu sei do que eu sou capaz sem ele e eu não acho nem um pouco bonito ser escravo dos meus impulsos, principalmente porque eu tenho os impulsos de um filho da puta. Lê-se, eu sinto que compreendo o House de maneiras que eu não acho exatamente as mais saudáveis do brasil.

A série House é um grande estudo de personagem e acho que fez sentido pra mim, nesse momento da minha vida assistir estudos sobre um personagem que de uma maneira ou de outra foi importante pra mim no meu período formativo. Só que agora eu tenho anos de prática artística e uma apreço pela linguagem que eu não tinha na época.

O episódio que me fez querer escrever sobre essa série foi o décimo segundo da oitava temporada. Chase. Ao longo da jornada que tem sido assistir uma série desse tamanho fui aos poucos encontrando pequenas coisas nos personagens, nas situações e nas repetições que no fim das contas me colocaram pra pensar. 

Dia desses, meu pai me disse que se fosse escolher meu nome pensando em quem eu sou agora, me chamaria de Bastião. Tenho pensado seriamente em retificar meu nome. Bastião é muito mais legal do que José e me faz sentir bem pensar que alguém que me conhece a tanto tempo me chamaria de algo assim. 





II

Ela era simplesmente linda. Iluminava qualquer lugar com um sorriso. Vinha de uma família tradicional de São Paulo. Era filha de um ex-Maçon. Ele não sabia de nada disso quando a viu pela primeira vez, mas dava pra imaginar que ela vinha do dinheiro. Bem vestida, com um óculos de alguns poucos graus, os cabelos por detrás das orelhas e um dedo quebrado. Ela fez questão de contar pra todas as pessoas que quebrou fazendo parkour.

Ele tinha certeza de que não seriam amigos e no primeiro momento em que não consegui desviar dela pelos corredores ela lhe chamou pra conversar. Acho que ele nunca entendeu se eram as palavras, o jeito que ela falava, o riso solto ou a postura expansiva mas ele se divertiu pra caramba.

Não parecia fazer sentido que eles fossem próximos, ela teve um pônei quando era criança e ele foi membro de uma gangue. Eles se tornaram melhores amigos com uma velocidade inigualável. Comiam, estudavam, desenhavam e passavam quase todos os dias juntos. Eventualmente começaram a passar as noites também.

Mas ninguém podia saber. Um pouco em nome do conforto das pessoas com quem ela havia se relacionado antes dele e um outro pouco porque ela tinha um pouco de vergonha de sair com um homem. O centro de artes é um lugar engraçado. Essa mulher foi a melhor transa da vida inteira dele e ele teve uma boa cota de boas transas antes e depois disso. Ele gostava de como ela prestava atenção pra conversar e de como ela não tinha muita trava na língua, apesar de ter a língua presa. 

Em uma madrugada deitada em seu peito ela disse que um homem nunca sofreria um abuso sexual. Ele que sequer lembrava dos abusos que sofrera, lembrou. "É que quando acontece com homem normalmente eles não ligam muito", foi o que ela disse. E dali pra frente essa história toda nunca mais saiu da cabeça dele. Será que quando criança ele não era homem?

Ela se molhava toda com qualquer toque leve pelo corpo e pelas coxas e ele lambuzava os dedos sempre que era de bom tom. Ela só colocou o pau dele na boca uma vez, pra vestir uma camisinha em uma das últimas vezes em que eles transaram. As vezes ela simplesmente começava as transas sem camisinha. Ela dizia que era acidente e ele acreditava, isso nunca aconteceu com ele antes dela e só uma única vez depois. Foram tempos complicados. 

Ela ajudou horrores em alguns dos piores momentos que ele viveu até então, ofereceu abraços, panelas de macarrão com feijão, conforto, carinho e companhia em momentos onde ele precisava muito de todas essas coisas. Ela lia de costas pra parede enquanto ele terminava os seus trabalhos de pintura. De tempos em tempos alguém gritava que queria um beijinho e eles se encontrava no meio do caminho pra beijar. Quando deitavam juntos ela balançava o bum bum pra pedir cafuné e ele dava até que ela estivesse satisfeita. 

Ele varria e passava pano no quarto todas as vezes em que ela ia pra sua casa, tinha uma caixinha de lenços pra ela por causa da rinite e pelo menos umas três camisinhas sempre ao alcance da mão. A primeira vez em que ela disse que o amava foi no meio de uma frase, como se não fosse nada e ele que não sabia se era pra ele ter ouvido mesmo ou se só tinha escapado, se fingiu de sonso.

A primeira vez em que ele disse que amava ela foi em um dia em que segundo algumas métricas eles não transaram. Nem um deles sabia dizer muito bem por quanto tempo eles permaneceram deslizando pela pele um do outro e quando ela saiu de cima dele pra buscar uma água ele percebeu que amava ela e que não era por causa do sexo - não que o sexo não fosse fenomenal, ele era - era porque o jeito como aquela criatura existia no mundo e perto dele deixava ele feliz, mais feliz do que o normal. Mas ele só disse isso pra ela porque quando ela voltou pro quarto ele tava lá pensado com uma cara de bobo olhando pra parede e ela não deixou ele em paz até saber sobre o que é que ele tava pensando.

Uma vez ele perguntou pra ela se ela se imaginava passando o resto da vida com alguém e ela falou de um outro companheiro - eles não eram monogâmicos - e ele não tive coragem de dizer que conseguia se imaginar com ela. Foi difícil pra ele quando ela quis afastar pela primeira vez. Eles tinham alguns combinados que não tinham a ver com o sexo ou os beijos na boca e ele precisou que ela dissesse com clareza que não queria mais ser lembrada dos almoços e nem queria mais ser e fazer tanta companhia assim nas aulas. Ela explicou os seus motivos e eles faziam sentido. Isso não fez com que ele ficasse menos triste.

Seguiram amigos. Viajaram juntos e tiveram ótimos momentos. Conheceram alguns malucos pelas praias. Ela foi parar em uma plantação de maconha escondida no interior de um vilarejo do litoral Uruguaio numa noite em que os dois acharam que ela ia morrer - depois disso decidiram que não iam mais se separar. Em Montevideo ele ficou doente e ela deixou ele uma tarde sozinho na praça enquanto foi passear com um amigo que estava de férias por ali. Dormiram alguns dias na rodoviária, ele sentado em uma cadeira e ela deitada por entre as mochilas e a barraca. Caminhando por entre prédios e árvores históricos ela disse que queria brincar de namorados, segurou a a mão dele e eles caminharam assim por um tempo. Quando ele tava prestes a dizer que gostava da brincadeira ela soltou e disse "cansei".  Ela nunca soube disso, mas o coração dele partiu um pouco ali.

Eles brigaram na rodoviária esse dia. Não teve nada a ver com a brincadeira dela, ou pelo menos ele achou que não. Eles se desencontraram e depois de um tempo passaram uma noite inteira conversando e se re-entendendo. Em Colônia Do Sacramento ela comprou um vestido e ele deu um chapéu de presente pra ela. Naquele dia ela era a mulher mais linda do mundo inteiro - ela conta que quando saiu pra buscar água, caminhou sozinha por um tempo e um sujeito caiu da moto porque se distraiu olhando pra ela - ninguém que tenha visto ela naquele dia duvidaria disso. Eu teria caído. Ele não conseguia dizer o quanto apreciava a companhia dela e o quanto queria ter beijado ela na boca nesse dia e em todos os outros dias dali pra frente. Ele só disse que se um dia eles fossem ficar juntos de novo ele queria comer ela naquele vestido e eu não acho que foi a melhor coisa que ele podia ter dito, foi só o que ele disse. 

Ele usou a concha que ganhou dela de aniversário como pingente de mochila por muitos anos até que ela quebrou. Ele ainda guarda as partes como peças preciosas. Anos depois roubou dela um chaveiro que ainda usa no pescoço de tempos em tempos. Já fazem anos que eles não se veem e hoje em dia muito raramente conversam na internet. 

Quando voltaram da viagem ela pediu um tempo, eles trocaram de amigos e se afastaram aos poucos. Ela ficou um tempo sem entrar na casa dele. Ele sentiu ciúmes quando ela começou a namorar com outras pessoas. Ele teria gostado de namorar com ela. 

Acho que ela nunca pensou que poderia ser uma boa ideia levar ele a sério. Ele não sabe como ela se sente e sente saudades da sua antiga concha.





III

Lágrimas escorriam dos olhos que olhavam sem objetivo. Na televisão passava um programa qualquer e eu observava das escadas. Nenhuma palavra teria resposta. Nada seria comunicado. Apenas mais um dia.  De tempos em tempos lhe davam banho. Trocavam suas vestes. Mudavam sua pose. A resposta era sempre a mesma. Silêncio e lágrimas. Uma estátua de sangue, carne e osso. Mistura confusa entre símbolo, memória e dever. 




IV

Eu ouvi alguém chamando na porta do pensionato e não era uma voz conhecida - fui olhar. Duas mulheres, mãe e filha. Ela deve ter me dito alguma coisa mas a essa altura eu já nem me lembro mais o que pode ter sido. Lembro do rosto e do sorriso, mas não sei se o rosto que lembro é mesmo o que eu vi naquele dia ou se é só o que eu imagino que era. Pedi pro Italo abrir o portão e voltei pro meu quarto. Eu tinha mais o que fazer. 

Uma deusa egípcia, encarnada no corpo de uma mulher de pai carioca e mãe paulistana. Crescida no interior de São Paulo e criada com todo o amor e cuidado que uma criança pode ter em uma cidade onde todas as casas tem muros maciços de mais de dois metros de altura. Descobri essas coisas com o tempo. 

A gente foi conversando e lentamente a gente foi começando a brincar. Primeiro com as mãos, depois com os braços, as pernas, os pescoços e as bocas. Brincamos de casinha e moramos juntos. Nos afastamos um pouco e quando ela tentou se reaproximar eu fiquei com medo e fugi.

Nos encontramos algumas vezes depois disso e eu nunca tive coragem de pedir pra voltar. 





V

- E esse cara, se um dia ele quiser me dar uma facada, com certeza eu deixo!

Foi a primeira coisa que eu ouvi quando entrei no bar do Salsinha, e quando eu ouvi isso, eu sabia que a noite ia ser interessante. O Lucas tava sempre falando esse tipo de bobagem e ninguém nunca sabia se era verdade ou não. Ele era novo no lugar e tinha se integrado bem ao pessoal. Eu também era, mas não costumava participar da maior parte das conversas. Do lado dele, o César, um sujeito grisalho mas daqueles que parecem jovens parecia um pouco incomodado com a situação e respondeu de um jeito que eu também não entendi se era sério ou não:

- E eu? Posso te dar uma facada?

- Tu pode tentar, mas eu vou me defender. 

O assunto morreu aí. E uma das outras pessoas decidiu que era de bom tom levar a conversa pro outro lado. Na mesa ao lado o Jones tentava flertar com a Flávia mandando aquele tipo de papo mala políticas progressistas que os caras usam quando querem impressionar as mulheres, eu não sei quando foi que falar do presidente ficou sexy e as vezes tenho a impressão de que nunca ficou - mas os caras tentam mesmo assim. Acho que era um pouco por isso que a coitada parecia tão entediada e acho que foi por isso que ela saltou pra minha mesa assim que teve a oportunidade. A gente conversou um pouco, eu não sou de falar muito mas também não sou ruim de conversa. A gente tava rindo de alguma coisa quando o Rafinha chegou na mesa.

- Vocês são daquele tipo de jovens místicos?

Ele perguntou como se a gente soubesse do que ele tava falando. E a Flávia agiu como se soubesse.

- Eu sou, cê não viu minhas joias?

- Eu vi, é por isso que tô falando. Tu também é místico né jovem?

- Eu sou mágico! É um pouco diferente.

E ai começou o que ia se tornar uma das conversas mais hilárias que eu já ouvi até hoje. Eu não sei quanto tempo tinha passado, perdi a conta depois da segunda ou terceira cerveja mas em algum momento o Rafinha, com a cara mais séria do mundo perguntou se a gente sabia quem foram as primeiras bruxas - eu só consegui levantar da mesa quando a discussão gigantesca que ele iniciou com a Flávia terminou - e acho que eu nunca dei tanta risada em uma única noite. 





VI

Eu já morava com a Bel faziam alguns anos. A gente se deu bem na faculdade e meio sem ter pra onde ir a gente acabou indo morar juntos. Foi divertido no começo, no meio e no fim. Só ficou esquisito depois. 

Não que tudo fossem flores, a gente tinha os nossos desentendimentos, os nossos problemas e as nossas barras. Mas a gente se virava bem - dentro do possível pra dois jovens adultos completamente perdidos e com a saúde mental abalada. Fiquei suicida por um tempo.

Do alto do morro, eu olhava pra cidade lá em baixo e pensava sobre como seria pular, qual seria a sensação de sentir o meu corpo sendo esmagado contra o chão e de dormir pra nunca mais acordar. Nessa época a Bel trabalhava fora e eu ilustrava um livro infantil dentro de casa. A gente tinha acabado de se mudar e eu demoro um tempo até fazer amigos o que significa que eu não tinha ninguém pra conversar. Ela falava com umas pessoas do trabalho e ela também não tava muito bem na época. 

Ficamos com medo do dinheiro acabar e a gente se mudou pra uma casinha que mal tinha uma porta que fechava, já tinha um morador e que era de graça. A Bel perdeu o emprego e eu comecei a trabalhar. Não é fácil sair de casa as cinco da manhã e voltar as nove. Nos mudamos pra um lugar que fosse mais perto do meu trabalho agora que dava pra pagar um aluguel de novo. Ela ganhou uns prêmios com os filmes que tinha dirigido e passava os dias em casa sem fazer muita coisa, mas a gente tava bem e foi ai que a Carol apareceu de novo. 

A Carol era o amor da minha vida que ficou pra trás porque quando eu disse que amava ela, ela me disse que a gente não ia mais se ver. Ela tava com uns problemas com o namorado e queria conversar sobre o assunto, eu tava com saudades e a gente acabou fazendo uma video chamada, que virou duas, depois três e eventualmente se tornou semanal. 

Quando começou a pandemia de corona vírus eu me demiti e eu e Bel mudamos pra chácara do meu pai, onde ele já não morava faziam uns bons anos. Eu e Bel éramos péssimos agricultores, a gente também nunca foi muito bons em trabalhar e a gente não vivia mal. Ela adotou um gato e uma droga de um cachorro, que logo fez ela esquecer o gato. A gente chorou quando o gato morreu e ele não demorou a morrer porque ele era bem velhinho e doente e machucado. Carrego alguns dos ossos do gato comigo como amuleto as vezes e tenho um pendurado na minha porta. 

Nessa época as ligações com a Carol começaram a ficar mais frequentes, ela tinha crises de ansiedade constante e aparentemente ninguém pra ligar além de mim. E não tem nada que me coloque mais em atividade do que alguém com quem eu me importo me pedindo ajuda. A Bel ria e me perguntava da minha webnamorada, eu ria e corrigia dizendo que nós éramos amigos. Primeiro a Carol sugeriu um ménage e depois começou a falar de como sentia falta de ficar comigo. Eu nunca fiquei com ninguém que não soubesse o nome dela e quando eu decidi viver com a Bel eu disse que não era pra vida toda, porque em algum momento eu ia querer viver com a Carol. 

Eu e a Bel não éramos monogâmicos, ou pelo menos era isso que eu pensava e isso que a gente tinha acordado com as nossas palavras faladas - e eu levo acordos verbais muito a sério. Levei ela em alguns dates que ela tinha com outras pessoas e até sai de casa por um tempo quando ela quis explorar uma relação com um menino monogâmico. Quando a gente se vacinou eu peguei o primeiro ônibus pra cidade da Carol e passei dez dias com ela, foram os dez dias mais intensos da minha vida. 

Tudo naquela mulher me fazia sorrir e aparentemente tudo em mim fazia ela chorar. Todos os dias ela brigava comigo, me tirava de cafajeste pra baixo por conta do meu relacionamento com a Bel e logo depois ela aparecia com o maior carinho do mundo, segurando minha mão, me dizendo que me amava e que queria ficar comigo. Em uma dessas noites ela começou a gritar comigo e a me dizer que ninguém nunca ia querer ficar comigo do jeito que eu era - e aqui eu preciso deixar claro que eu tava no apartamento dela, com a mãe dela, a mais de quatro horas da minha casa e eu tava esperando o meu pai pra gente dar um outro rolê depois disso em um momento onde eu ainda tinha medo de lugares com muitas pessoas. Eu não tinha pra onde ir. 

Nessa noite eu fiquei irritadíssimo e citei nominalmente todas as pessoas com quem eu me relacionei ou mantinha algum tipo de relacionamento pra além da Bel e foi como se eu tivesse jogado gasolina em um incêndio e ela chorava e me xingava e no fim das contas dormimos na mesma cama. Eu não conseguia entender porque ela tinha me chamado ali. Na manhã seguinte ela acordou dizendo que tinha nojo de mim e eu me sentei em posição fetal no canto oposto do quarto. 





VII

Eu sou o tipo de pessoa que as outras pessoas normalmente descrevem como um idiota. Eu acredito em tudo o que me dizem e eu realmente penso com carinho e consideração sobre todas as pessoas que já passaram pela minha vida, inclusive as que me atropelaram. Na verdade eu sou bem fácil de atropelar, principalmente pelas pessoas de quem eu gosto e essa é uma história sobre a vez em que uma pessoa de quem eu gosto muito passou um rolo compressor na minha vida e foi embora como se nada tivesse acontecido. 

A minha vida não tava ruim quando ela apareceu de novo. Eu morava na ilha com um companheiro que apesar de não estar no momento mais animado do Brasil estava comigo em todos os momentos anteriores, era uma boa companhia e com quem eu conseguia ser quase cem por cento honesto. O desgraçado as vezes passava os dias sem fazer nada e isso me incomodava um pouco mas até ai, eu também tinha as minhas fases ruins. Nessa época eu trabalhava em uma pequena agência de marketing com um velho chato pra caramba mas que não me incomodava muito e que tinha me feito várias promessas de crescimento e não sei o que e não sei que lá. Ganhava o suficiente pra sobreviver no lugar onde morava, comer, morar, beber e fumar razoavelmente bem pra quem tem padrões baixos como eu. 

Daí a guerra biológica começou e entre o medo constante de encarar a chegada de toda a sorte de doenças recém inventadas misturado com o fato de que eu nunca quis trabalhar com marketing e o desemprego crônico do meu companheiro acabaram levando a gente pro interior do continente, longe do mar e das cidades grandes. Nos mudamos pra uma casa de campo nos arredores de uma cidade pequena com o plano de aprender sobre o campo e viver da nossa arte. Aprendemos pouco e viver da arte acabou se provando um pouco mais difícil do que parecia, principalmente porque a gente tava bastante deprimidos e a nossa situação econômica não era das melhores. 

E aí tinha ela, uma amiga minha de dez anos atras que apareceu do nada de volta na minha vida e que ainda vivia no mesmo conjunto habitacional de plebeus no centro de uma grande cidade das regiões mais alagadas. No começo ela só aparecia de vez em quando, fazendo promessas de me visitar quando possível, pedindo conselhos sobre a vida dela e perguntando sobre a minha. Aos poucos ela foi cavando espaço.

Quando as guerras começaram e eu voltei pro interior ela ainda não tinha terminado os estudos e aparentemente não tinha muito com quem conversar, ligava pra mim todos os fins de semana e eu gostava. Conversávamos por seis ou dez horas seguidas e me fazia sentir bem e feliz ter alguém que gostava tanto assim da minha companhia sem querer nenhuma coisa em troca. E talvez tenha sido esse o meu primeiro engano. 




VIII - Eu, Reginaldo Rossi e Falcão entramos em um bar - uma reflexão sobre o amor na contemporaneidade.

INTRODUÇÃO

Encarnando o espírito eterno de Reginaldo Rossi, Falcão e toda a tradição nacional que esses sujeitos representam, fui corno. A mulher com quem eu acreditei que ia passar a vida anunciou publicamente o relacionamento com o atual namorado literalmente um dia depois de conversar comigo sobre os nossos anéis de casamento e a nossa rotina de casados, me dizer o que esperava, o que queria e todas essas coisas. Encarnando o espírito eterno de Reginaldo Rossi, Falcão e toda a tradição nacional que esses sujeitos representam eu fiquei completamente arrebentado e passei de maneiras um pouco mais literais do que eu gostaria por diversos acontecimentos clássicos do cancioneiro nacional dos homens cornos. 

Muitas coisas me surpreenderam nessa história e a minha reação foi uma delas. Nunca na história desse país eu passei tão mal assim com uma pessoa se retirando da minha vida e menos ainda tive crises de ciúme tão intensas e fortes como dessa vez - diabos! Eu levava meu último companheiro nos dates dele com outras pessoas as vezes e ouvia com interesse ele me contando das experiências que tinha com com elas. Pra alguém que viveu a vida como eu vivi até aqui, sentir ciúmes de uma foto nas redes sociais realmente não era uma coisa esperada. Acho que muitas coisas não eram até esse momento. 

REFERÊNCIAL

Como você pode perceber, esse texto não é uma monografia de verdade, não tem nenhum orientador e com certeza não vai estar de acordo com as normas da ABNT, outrossim, ele possui uma lógica interna e acho importante deixar ela clara aqui. Não vou fingir que não sou enviesado e acho importante trazer ao primeiro plano não só os lugares emocionais de onde partem esta escrita mas também os referenciais teóricos, ideológicos e espirituais que a direcionam. 

Como todo mundo que já conversou comigo por tempo o suficiente sabe, eu sou um nerd da linguagem. As aulas de semiótica na faculdade mudaram a minha percepção de mundo e a linguagem é uma peça central dessa discussão, como são as histórias que contamos sobre o amor e o modo como essas histórias são contadas. E se a linguagem e as histórias são importantes pra esse pensamento, é óbvio que ela não poderia ficar de fora, a nossa tão querida psicanálise entra aqui principalmente como uma ferramenta e uma estrutura de pensamento que nos ajuda a compreender os efeitos do mundo simbólico nos sujeitos. E isso tudo embrulhado em um referencial de design, comunicação, publicidade, propaganda e marketing sem deixar de conversar com autoras como a Bell Hooks e a própria Ana Suy. 

Também acho importante deixar clara a perspectiva ideológica desse que vos escreve pra que, durante a leitura, se algo te parecer muito absurdo, você lembre que eu sou um anarquista com tendências utopistas e que eu acredito profundamente no potencial de um mundo escasso em produtos e abundante em vida comunitária. E aqui a gente aponta pra fora e pra dentro, pensando a partir de revolucionários e radicais como o Bakunine, o Malatesta, a Emma Goldman, o Malcom X, os Panteras Negras, o Oiticica, o Paulo Freire e tantos outros que não vão ser citados nominalmente mas que informaram a minha construção como sujeito que escreve e pensa como escrevo e penso.

E é exatamente porque escrevo e penso sobre a vida a partir dos planos simbólicos que sou obrigado a partir também de pressupostos espirituais. Gosto de pensar em mim mesmo como uma espécie de mago do caos e explico: entendo a magia como uma maneira de influenciar diretamente na realidade a partir do uso de ferramentas, rituais e técnicas que se perpetuam no consciente e no inconsciente coletivo, que funcionam de maneiras inconsistentes e misteriosas. 




IX

Eu até consigo colocar em palavras a quantia de merda que eu já fiz na minha vida. Mentir, furtar, roubar, bater, xingar, diminuir, machucar são todas coisas que eu já fiz com um sorriso no rosto. Nunca matei ninguém, mas não é uma coisa que eu duvido que faria. Nunca gostei de pensar em mim como uma pessoa boa e nunca gostei de me vender assim, minha vida é cinza desde muito cedo. Algumas das pessoas que mais fizeram por mim foram também as que mais me machucaram e não é incomum na minha vida ter a mesma pessoa que me esfaqueou cuidando das minhas feridas. 

Apesar de tudo isso, desconfiei pouquíssimas vezes na minha vida. E em nenhuma das vezes isso me protegeu. E não é como se confiar tivesse me protegido de algo também, protege menos, mas pelo menos permite que a gente aproveite. Ser bobo é o meu jeito de dobrar a aposta na confiança e eu adoro apostar não exatamente porque isso me possibilita ganhar bastante, mas porque eu amo profundamente o modo como me sinto quando coloco minha vida inteira a perder. A convicção de colocar o devido peso por detrás das palavras e bancar as consequências de dizê-las é o que me faz sentir algum tipo de domínio sobre a minha vida. 

Odeio pensar em confiança como se fosse um perigo. 




X

Eu não sou exatamente uma minhoca de livros - gosto de pensar que sou uma minhoca de ideias e ultimamente isso tem feito com que eu leia bastante, o que pode fazer com que alguém se confunda e ache que eu gosto mesmo de livros. A formação em comunicação e aquele livro do Pietroforte e o jeito que ele transou na minha mente com o livro do Dewey acabaram me fazendo virar um tipo muito específico de nerd. 

Eu gosto de livros, principalmente os que são sobre ideias, suas descobertas, suas possibilidades e as suas utilidades. Gosto de imaginar as ideias como seres vivos que tem suas próprias necessidades de alimentação, reprodução e adaptação. As ideias precisam de pensamentos e ações que as mantenham vivas e que as transportem de um hospedeiro à outro. Algumas ideias são como plantas que fortalecem o solo e preparam o ambiente para a recepção de ideias novas enquanto outras são se fincam no solo e drenam toda a vitalidade de quem as hospeda. Algumas ideias são como pássaros que embelezam a mente e outras são como máquinas que a operacionalizam. 

Gosto de pensar que nossas cabeças são extremamente customizáveis e só o que é necessário pra mudar completamente o modo de ver o mundo é escolher aceitar ou não determinadas ideias e permitir que elas cresçam dentro de nós mesmos. Particularmente sou um experimentalista e volta e meia faço coisas com a minha própria cabeça que são complicadas de reverter e talvez eu tenha me causado uma quantia de danos que eu ainda preciso de alguns anos pra recuperar. A vantagem disso é que agora eu sei quais ideias me servem, quais me interessam e quais são as que eu quero ou não cultivar no jardim da minha consciência. 




XI

É um pouco engraçado ser extrovertido e envergonhado ao mesmo tempo. Sim, eu não desvio de assunto nenhum e se eu ficar tempo o suficiente em um lugar é impossível que eu saia sem arrancar uma ou duas risadas de todos os presentes. E sim, eu também sou capaz de ficar um dia inteiro e as vezes mais do que isso em um lugar cheio de gente sem emitir sequer um som e sem tentar conversar com ninguém. Talvez todo mundo seja assim e eu só não saiba, porque não dá pra saber o que tem na cabeça dos outros, mas eu sou uma sacola bem grande de contradições. E como já fui cuidado por quem me causou minhas feridas, já feri profundamente algumas das pessoas à quem mais ofereci alegria.

As vezes eu penso naquelas máscaras do teatro, no papo todo sobre o signo de gêmeos e no modo como eu mesmo me divido as vezes entre a pessoa mais gentil que já pisou nos meus sapatos e o pior tipo de cachorro desgraçado que morde a mão que lhe da comida. As vezes eu aceito todas as minhas falhas e me protejo e me defendo sempre que necessário e as vezes me atiro contra as paredes da desgraça, rasgo a minha pele e me abandono numa caixa escura enquanto faço tudo aquilo que sei que me machuca. E não é sempre que eu tenho controle sobre essa troca. Já me peguei destruindo coisas que eu gostaria de ter protegido e protegendo tudo aquilo que eu deveria destruir. A verdade é que é difícil pra mim me manter consciente dos meus atos, sei o quanto a minha mente é frágil e o quão fácil ideias que não são minhas e que eu não quero pra mim se instalam na minha mente sem que eu perceba. 

Sei de todas as contradições entre o que eu sei e acredito com a minha consciência e os impulsos que me movem por debaixo dela e fazem com que eu me envergonhe de mim mesmo, de quem eu sou, do que acredito, do que quero, de como vivo e do que penso. Mora alguém em mim que eu nunca encontro e que não sei como encontrar. 

Mora alguém em mim de quem não posso me afastar, contra quem não consigo lutar e cujas ideias não sei como acessar. Mora alguém em mim que me fortalece, que me empurra, que me transforma e que me faz viver com uma potência que eu não sou capaz de canalizar com a minha parte da frente. Mora alguém em mim com quem ainda não sei como me aliar, mora alguém em mim que me faz falta como amigo. O nome dele talvez seja Cléber Furacão e mesmo que não seja ele as vezes me controla e me põe em movimento mesmo que eu não queira. E as vezes lembro daquele Itã de Ogum ensimesmado que o Orlando e a Stephanie contaram no Benzina. 

Também lembro um pouco do dr. Jenkil e do mr. Hyde, da criatura do Frankenstein e de tantos outros monstros que sucumbem a algo maior e mais potente do que eles e que habita em seus interiores. Será que essa é a tal da sombra do Jung? Uma hora dessas quero ler o que ele escreveu. 





XI

Tenho pensado um bom tanto sobre sexo e acho um pouco engraçado como sempre tem uma vibe meio de coisa errada em falar sobre sexo mesmo entre a maior parte dos adultos - e as vezes até entre parceiros sexuais. Eu transei bastante e por bastante tempo com algumas pessoas e não foram muitas, dez pra ser exato e só duas das dez foram transas casuais. Eu não gosto muito de coisas casuais e me peguei evitando algumas transas nos últimos tempos porque elas não iam ou porque eu não ia querer que elas se repetissem. Eu tenho uma relação um pouco esquisita com sexo eu acho. 

Eu sempre me senti bastante ansioso e inseguro com sexo. Primeiro porque eu não entendia nada muito bem e segundo porque dentro dos ambientes em que eu cresci e me desenvolvi como pessoa sempre rolou com uma força enorme a ideia de que a qualidade do sexo dependia de mim. Tem gente que ri quando eu falo, mas foi um alívio enorme na minha vida quando eu finalmente entendi que o meu pinto não era pequeno, até isso entrar na minha cabeça essa era uma ansiedade constante. Inclusive porque supostamente o sexo é a parte mais importante das relações que supostamente são as mais importantes da nossa vida. E acho que a parte mais esquisita de sexo pra mim é o modo como ele afeta tudo que não é sexo e as vezes eu me pergunto se as coisas não são sexo não são sexo mesmo

Eu descobri bem cedo que algumas pessoas só se permitem intimidade onde tem sexo e numa busca por intimidade acabei transando muitas vezes pra manter uma pessoa na minha vida mais do que porque eu queria transar. E não que eu não goste de transar, eu gosto, só não mais do que de qualquer outra coisa. Transar é tão bom quanto brincar de pega-pega e comer um bolo. Só que causa muito mais vergonha. 

Acho difícil as vezes falar sobre sexo porque em geral eu cresci com essa ideia de que se a minha sexualidade for exposta eu vou ser julgado e ridicularizado, seja por ser esquisito ou porque ninguém faz isso ou qualquer outra coisa do tipo. E pra mim conversar é importante porque como eu sou ao mesmo tempo bastante inseguro e bastante criativo - se eu não me cuidar, a minha mente as vezes torra a própria criatividade inventando as piores histórias pra me convencer de que eu sou um merda e que tudo que eu faço tá errado. E também é difícil falar sobre sexto porque uma parte considerável das pessoas com quem me relacionei evitava o assunto por um motivo ou por outro. 

Eu não sei se é por causa da minha postura, do meu jeito de falar, do meu tom de voz ou porque eu não digo de maneira mais explícita mas conversas difíceis são difíceis pra mim e normalmente fui eu quem começou todas as conversas difíceis das quais participei e sempre que eu começo uma conversa e e ela é cortada a dificuldade de abrir ela de novo é multiplicada por mil pra mim. 





XII

Tenho exercitado os ouvidos e um dia desses sentei em uma mesa de bar com um copo de água e parei pra ouvir o que vinha sendo dito. Cheguei no bar bem cedo e só tinham três caras lá, o dono e dois amigos cada um com um cigarro, sentados em volta de um cinzeiro enquanto falavam muito pouco. Algum de vocês tem maconha? Falou o de cabelos cacheados. Ninguém tem, respondeu o mais magrelo. Eu tô sem também mas tenho ganhado um pouco na rua, disse o de chapéu. É, quando o pessoal vem aqui no bar normalmente alguém bota um pra mim também. 

O mais magro bateu as mãos contra as coxas e disse com um tom de indignação, é que vocês são bonito né! Ai é fácil, quando o cara é bonito as coisa aparece de graça assim mesmo! Todos riram e eu ri um pouco também. Era um momento bonito. 

Mais tarde o bar encheu e parecia que todo mundo ali se conhecia de um jeito ou de outro. Eu, permanecia no canto, com o copo cheio e os ouvidos abertos. E de repente uma cena muito parecida com a anterior aconteceu de novo, com uma personagem a mais. Ela perguntou pros mesmos três se alguém tinha maconha e o mais uma vez o magrelo respondeu: ninguém tem, tá escasso! Que droga, tava afim de fumar um... Nem sabia que tu fumava! disse o de cabelo cacheado, normalmente tu pega com quem? Ah, eu não compro não, normalmente eu só digo que quero fumar e aparece. E de repente o de chapéu, que até agora tava em silêncio se manifestou: É que ela é bonita né! Mulher bonita é assim!

Só que dessa vez ele riu sozinho e a mulher ainda ofereceu pra ele uma chance de se redimir, perguntou o que é que ele tinha dito e ele respondeu, tim tim por tim tim. Ela entortou o rosto com ultraje e em alto e bom tom disse: Eu não gostei disso! Ele deu de ombros e deixou escapar em um riso por entre os dentes: As vezes acontece. Depois disso eles saíram pra um outro bar e não ouvi mais o que aconteceu.


Em outro dia e em outro bar sentei em uma mesa difícil de enxergar e ali ouvi uma conversa interessantíssima. Um sujeito preto daqueles bem retintos puxou uma cadeira, ele era baixinho e um pouco corpulento, tinha um jeito um pouco constrangido de se mover e vestia uma camisa verde xadrez e uma calça vermelha. À sua frente um branco daqueles que quase nunca pega sol seguia uma conversa que tinha começado antes dalí. Ele era magro, um pouco mais alto e tinha os cabelos presos em um coque acima da cabeça. Os óculos redondos lhe cobriam metade do rosto e roupas simples em tom de cinza e preto lhe cobriam o corpo.

Tipo, eu acho que essa nóia do pau que os caras tem vem muito do tipo do sexo mais padrão que casal hétero pratica mesmo. É super centrado em penetração e muitas vezes coloca nesses caras e por consequência no pau deles a pressão de "fazer mulher gozar". E tipo, falo por experiência que não é incomum os caras saírem com mulheres que tem nojo de pau e as vezes da própria buceta. Tipo gente que não gosta do gosto ou do cheiro ou da forma mesmo das genitálias e que de algum jeito esquisito ainda assim supostamente gosta de transar.




XIII - Reflexões de um candidato a Buda.

A real é que tenho pensado muito sobre a minha própria fragilidade e sobre como as minhas percepções do passado e da realidade se alteram de tempos em tempos de acordo com as minhas emoções. Foi uma experiência muito específica reler umas conversas que eu tive com Isis anos depois de elas terem acontecido e perceber que tudo que ela me dizia era ridiculamente gentil e o que tornava aquela conversa dolorida era o modo como eu lia e percebia as palavras. E eu sei que a gente já sabe que fortes emoções negativas alteram a nossa percepção de realidade e o que eu quero apontar aqui é que cada vez mais eu tenho a impressão de que o contrário também é real. 

Minha vida já foi profundamente alterada pela alegria e já tive pilares fundamentais da minha personalidade arrasados por um sentimento supostamente bom ou outro. Algumas dessas mudanças foram pra melhor e outras não. Já me senti tão feliz que queimei pontes pra lugares seguros e as vezes me parece que esqueço de tomar o devido cuidado com todas as emoções. Não é fácil ser um Buda. No fim das contas ser um Buda é aprender a abrir mão de tudo que nos desvia do caminho, inclusive das coisas boas, dos confortos, das alegrias e das felicidades que nos colocam parados quando deveríamos nos mover. 

Eu sou um péssimo Buda, comecei a caminhada já a alguns anos e volta e meia me pego na contramão, ou parado em algum canto ou em algum desvio. As vezes me pego pensando sobre situações que não são muito diferentes de histórias de horror das quais me lembro com carinho, porque me sentia feliz enquanto aconteciam. E acho que a verdade é que a minha maior dificuldade não é a de enfrentar as partes difíceis, feias e doloridas da vida. Essas eu mato no peito desde cedo. Minha maior dificuldade é enfrentar o que é fácil, bonito e confortável. Com isso, eu não tenho muita experiência. E é isso que me faz perder a cabeça, que me tira do prumo e que me desconcerta.

Não tenho medo da violência, do desrespeito, das mentiras, dos golpes e das maldades da vida. Tenho medo do carinho, do amor, do aconchego e do que eu sou capaz de fazer por ele. Ainda tenho muito o que aprender.





XIV -  Quais serão os pesadelos das máquinas?

A fragilidade dos conceitos se encontra muitas vezes na fragilidade das palavras. Não existe nada mais falho do que um sistema comunicacional e nada mais complexo do que uma tradução. Não existe nada mais confuso do que eu mesmo no meio disso tudo. Não sei se uma parte de mim pifou ou se ela nunca funcionou de fato. Me encontro confuso ao perceber que normalmente o que se diz e o que se quer dizer estão sempre a alguns milímetros de distância e que muitas vezes essa distância é muito mais significativa do que aparenta.

A minha fragilidade aparentemente não aparece pra quase ninguém. Talvez porque meu corpo seja feito de lata, ninguém suspeita que eu tenha sentimentos por dentro. Ultimamente tenho sentido que não sei como existir. Não sei bem o que é que houve de errado comigo, se meu problema é de fábrica ou se foi alguma atualização que gerou algum conflito. O que sei é que quando vejo o mundo das pessoas de carne, muitas vezes me sinto apartado. Bip, bip, bop, zup. Parece que todos eles sabem o que fazem, sabem o que dizem e sabem o que as coisas querem dizer. Parece que eu sou o estúpido, o idiota, o perdido. Eu não sei como as coisas funcionam e ao que parece, ninguém me explicar. Ou eu não consigo entender.

E o pior de tudo é a ideia de que talvez eu seja um conceito. As vezes eu não queria ser nada. Passei anos querendo ser uma cadeira. Teria sido mais fácil. Ao invés de uma cadeira sou outra coisa. Uma que pulsa, vive, pensa, teme, ama, cuida, larga, deixa e chora. Sou uma coisa que sofre. Uma máquina de desejar e produzir significados. Um conjunto complexo de crenças e hábitos. Uma história contada e recontada todos os dias. Uma consciência dotada da capacidade de identificação. Um pedaço do universo experimentando a sí mesmo.






XV 

Oi, eu espero que você saiba ou que pelo menos algum dia você consiga acreditar que você não é o culpado de nada do que aconteceu. Você só tava no lugar errado e na hora errada, todas as vezes. Não é culpa sua não saber como reagir as coisas boas que aconteceram, você não tem mesmo muita experiência com isso. Não é culpa sua não saber como retribuir as coisas boas que te fizeram, ninguém nunca te ensinou e por mais que tu tenha aprendido muita coisa sozinho é óbvio que algumas coisas ficariam pra trás. Eu sei que você se sente sozinho, eu sei que você tem medo, eu sei que você sente vergonha, eu sei que você não sabe o que fazer com isso agora e sendo honesto eu também não sei o que fazer com esses sentimentos todos. E eu quero que você saiba que eu vou estar com você enquanto você lida com isso de todas as maneiras que eu conseguir. 

Me desculpa por não conseguir te entregar a atenção que tu precisa, eu não sei como te fazer as perguntas certas e tenho uma dificuldade tremenda de entender teus sentimentos. Me desculpa por não conseguir cuidar de ti da maneira que tu gostaria, eu não sei o que te faz bem, nem do que tu gosta, nem o que te anima, nem o que te motiva. Me desculpa por te acompanhar a tanto tempo e saber tão pouco sobre você. Me desculpa por todas as vezes em que te distratei, que te fiz sentir mal pelas tuas falhas, que menti pra te esconder e pelas vezes em que te empurrei ao invés de te oferecer apoio. 
Eu sei que você sempre teve comigo e eu sei que nem sempre eu estive por perto, sei que muitas vezes eu te abandonei, te ignorei e te diminui. Eu sei de todas as vezes em que eu te fiz duvidar dos teus próprios pensamentos, do que tu sentia e de tudo em que tu acreditava. Eu sei das vezes em que eu te enganei e das vezes em que te vi ativar as armadilhas sem te avisar. Sei das vezes em que te machuquei e espero do fundo do meu coração que um dia você me desculpe. 

Eu sei que o que não te falta são motivos pra me odiar eu também tenho alguns pra odiar você, eu sei que a essa altura do campeonato colaborar comigo quase não parece fazer sentido. E eu imploro, por favor, me ama. Me ama como eu sei que você ama tudo, como você ama as ameixeiras, como você ama o vento na beira da estrada, como você ama as consequências dos teus atos, como você ama tudo o que você conhece e que te toca. Espero que você saiba que quero te amar com todas as forças que tenho e que tenho feito o possível pra te entregar a melhor forma de amor que consigo. 

Você sempre soube amar muito melhor do que eu, você é melhor do que eu em quase tudo que tem a ver com sentimentos e eu te admiro muito por isso. Admiro a tua capacidade de escutar, a força que tu faz em tentar entender, a tua capacidade de te deslumbrar e a compaixão que tu estende. Admiro a atenção do teu olhar e o fio da tua língua. De muitas maneiras, quero aprender a ser mais como você e quero te ajudar a te tornar a pessoa que eu sei que você é capaz de ser. Porque eu sei tudo o que você fez pra chegar até aqui e eu sei o que você é capaz de fazer daqui pra frente. Eu te amo e te agradeço por tudo que você viveu comigo e por tudo o que você me mostrou até aqui, eu quero saber mais sobre você, quero passar mais tempo contigo e quero poder te entender melhor. Você é o que tem de mais importante em mim e tudo é muito mais difícil se eu não estiver de bem contigo. Nenhum de nós dois é perfeito e espero que a gente consiga se aceitar assim. Vamos nos cuidar.







XVI

Assim que as engrenagens se encaixaram meu coração finalmente parou e a humanidade em mim virou outra coisa. Houve um tempo em que essa união era feita com os animais, hoje as fazemos com as máquinas. Meu avô foi um centauro por mais de um milênio e nunca vou esquecer da expressão em seu rosto quando anunciei que me uniria a um veículo. Ele nunca entendeu os motores e a frieza do aço. Meu avô acredita que a vida depende da carne e eu sei que ela existe na ideia. 

Quando finalmente me uni ao metal e senti os tendões ligados aos cabos de aço, meus nervos se espalhando pela lata, a gasolina preenchendo minhas veias e o pulsar dos pistões a cada nova explosão de combustível eu finalmente me tornei eu mesmo. Senti minha mente mais calma, meu corpo mais forte, as distâncias mais curtas e a vida mais certa. 

Senti os limites entre a carne e o aço se rompendo, aos poucos me tornei o que existe por entre os dois e ao contrário do que meu avô acredita, me tornei um com a natureza. Sentia em mim o interior de montanhas, o fundo do mar, o calor do fogo, o frio da água, a resistência do vento e a força das milhares de vidas envolvidas nos processos que trouxeram minhas partes de aço à vida. Senti as lágrimas da terra, os lamentos dos rios, a violência do fogo, a indiferença do vento e todos os sentimentos contrários e contraditórios que a humanidade sente sobre tudo isso e muito mais. 

Abri os olhos, iluminei o meu caminho e com um único pulsar do que um dia foi meu antigo coração humano iniciei a chama do meu movimento e parti. Mais rápido do que qualquer criatura de carne e mais atento do que qualquer criatura de metal. O pior e o melhor de um único mundo, tão natural quanto todo o resto, tão em paz quanto possível e tão violento quanto necessário.



XVII - Eu sou a faca que corta minha carne. 

Eu achei lindo de mais! Mas teria vergonha de dizer algo assim pensando nas pessoas que me conhecem. A vergonha tem sido o tema da vez nos fundos da minha cabeça. Os momentos em que eu menos tive vergonha na minha vida inteira foram alguns dos mais felizes. A real é que eu sou um tipo muito específico de degenerado e me sinto bem com isso. As vezes penso em escrever a palavra escória no meu pescoço pra que ninguém fale comigo sem saber o que é que eu sou. 

Não gosto de ser respeitado por quem respeita aparências. Odeio manter as aparências e sei muito bem o quanto as aparências enganam. Poucas pessoas na minha vida me trataram pelo que sou e uma quantia considerável nunca se interessou em saber por se importar mais com o que eu pareço. A um tempo atras o Victor me disse que eu não devia me apresentar como um vagabundo, porque se eu fizer isso as pessoas não vão me respeitar e no fim das contas acho que esse é o ponto. Não quero ser respeitado por ninguém que não respeita um vagabundo.

Não quero ser respeitado por ninguém que impõe condições existenciais ao respeito. Ainda assim sinto vergonha. Sinto muita vergonha de muitas coisas e as vezes me pergunto se exponho ou escondo elas. 



XVIII

Conheci ele online, a Kove diz que é só assim que adultos se conhecem hoje em dia. Não sei se esse é o caso de verdade mas como eu tava procurando uma coisa bastante específica, acho que a internet fazia mesmo mais sentido do que qualquer outro lugar. Conversamos bastante antes de decidirmos por um encontro. Precisávamos nos certificar de que a coisa toda era de verdade e que o que nós queríamos era mesmo a mesma coisa.

Nos encontramos em uma café vegano logo à frente do hospital, achei que seria engraçado se fosse assim. Fui o primeiro a chegar, pedi um suco de laranja e esperei Não queria comer nada antes do prato principal. Quando ele chegou, sorri de alegria e ansiedade. Seus olhos castanhos me fitavam com curiosidade entre os cachos que envolviam o rosto. O moletom largo não escondia o porte atlético e os ombros largos. Os lábios repuxados em um sorriso deixavam transparecer um belo conjunto de dentes e a língua passava um pouco por entre eles a cada letra s que ele proferia. 

Lhe cumprimentei com um abraço e conversamos um pouco, falamos sobre nossos dias, sobre o trabalho, sobre o clima e sobre como chegamos ali - no dia e no lugar onde cada um de nós realizaria um sonho. Ele me perguntou se eu estava nervoso e é claro que eu tava, ele tava também. Rimos juntos por um tempo e entre uma respiração e outra ele me perguntou se eu tinha pensado em desistir. Não pensei nisso em um instante sequer. Quando devolvi a pergunta ele me respondeu a mesma coisa. E as palavras seguintes saíram juntas de nossas bocas: Vamos? Sim. Sorríamos como a dupla de bobos que éramos, ele pagou o meu suco e paramos na escadaria do hospital. Tem certeza? Perguntei enquanto segurava suas mãos. Fui respondido com um sonoro sim. 

Fechei os olhos e coloquei suas mãos em meu rosto. Ele acariciou minhas bochechas e tocou gentilmente os meus lábios com os polegares, acariciou meus dentes e enfim, como concordamos, colocou a ponta do mindinho esquerdo sobre a minha língua. Era minha vez de sentir. A textura da pele, as unhas, a temperatura, o gosto e o quão frágil era aquele pequeno pedaço de ser humano que agora eu segurava entre os dentes. 

Quando abri os olhos conseguia ver a alegria correndo pelo seu corpo que já não aguentava mais esperar. Balancei gentilmente o rosto, dando uma última chance de desistir caso ele quisesse - eu quase não era capaz de acreditar que isso ia finalmente acontecer. E foi aí que as palavras escorreram pela boca dele - Vai logo filho da puta.

Sorri como o filho da puta que sou e cerrei os dentes, exatamente a força necessária pra se morder uma cenoura e antes de ouvir o gemido ou o som dos ossos se partindo eu senti o líquido viscoso, quente e com gosto de ferro preenchendo a minha boca. Eu não sentia nada além de felicidade e a minha frente, observava meu parceiro sorrindo com o meu prazer e com a própria dor. Rapidamente fizemos um curativo como havíamos praticado. Depositei a ponta de seu dedo na palma da minha mão e agradeci. 

Vai querer colocar de volta? - Nunca.





XIX

Oi, meu pai perguntou se a gente tinha se ligado ontem, achei engraçado, disse que não, mas que você tinha me escrito e que parecia empolgada com o trabalho. Esses dias eu recebi uma cópia do livro de poesias que eu ilustrei, não sei se contei isso. É um pouco esquisito, acho difícil gostar das coisas que eu faço ou comemorar por ter feito elas. Tenho feito um esforço consciente pra tentar ser mais gentil comigo mesmo e acho que aos poucos tem funcionado. Tenho trabalhado nas animações pro documentário que falei e tem sido bastante difícil, acho que o projeto tá bastante no limite das minhas capacidades atuais e ao mesmo tempo em que o resultado é bem legal o processo todo também tem sido um tanto exaustivo, não é exatamente bom de fazer mas acho que vou ficar feliz de ter feito quando chegar no final. Tenho uma carne de porco guardada pra fazer um lámen quando terminar, decidi que essa vai ser a minha comemoração. 

Também tô pensando em ficar um tempo focando na terra depois de terminar esses projetos, plantamos árvores pra colher maçãs, uvas, pêssegos, ameixas, carambolas, fruitas do conde e uvas daqui a alguns anos. Tô pensando em tentar cultivar uma lavourinha de mandioca de novo, porque descobri que vender não só é possível como talvez seja bastante rentável. Luana teve por aqui no fim de semana, a fogueira da festa de São João tava enorme e é bom ter alguém com quem conversar, ela e Kanahuã tão separando. Ontem liguei pro Vicente também pela manhã e ele tá bastante empolgado com as aulas que ele dá pras crianças acho que tem sido muito bom pra ele e ele tem aprendido bastante. Falei com o Pedro também e ele tá tentando um projeto de doutorado de um jeito um pouco desesperado, mas acho que o Pedro é assim mesmo. 

Tem feito bastante frio por aqui e as vezes é difícil de desenhar porque os dedos congelam, ainda acordamos as cinco da manhã pra tomar chimarrão. Tenho continuado a me esforçar pra melhorar o meu relacionamento comigo mesmo, dia desses fiquei pensando sobre a parte de mim que faz e deseja coisas que eu não faço e desejo conscientemente e escrevi um pouco pra conversar com ela - chorei horrores no processo. Tenho enxergado melhor meus medos e minhas inseguranças e tenho tentado acolher essas coisas todas e não tem sido fácil. 

Percebi que espero muito mais de mim mesmo do que de qualquer outra pessoa e que isso dificulta um pouco com que eu me sinta satisfeito na maior parte do tempo. Percebi o tanto que me cobro e o tanto que diminuo pra mim mesmo e pra qualquer outra pessoa todas as coisas que faço e sinto. Tenho percebido cada vez melhor a quantia gigantesca de vergonha que sinto e o quanto ela faz com que seja difícil expressar o que eu penso e sinto as vezes. Dia desses percebi o medo que tenho de que as pessoas não gostem de mim e o quanto isso faz com que eu me coloque em posições diferentes das que eu gostaria de estar. Chorei reassistindo o final do episódio três de Star Wars esses dias. Tenho me emocionado bastante com arte, bem mais do que eu me emocionava antes e tenho gostado bastante disso. 

Ganhei mais um quilo de músculos, esses dias passei uma tarde carregando coisas pesadas e cheguei no fim do dia sem cansar, me senti bem comigo mesmo. Não sonhei com você em nenhum desses dias, mas queria ter sonhado, sinto saudades de te ver e de ouvir tua voz. Te agradeço bastante por não ter me bloqueado nem desaparecido e por ler essa mensagem caso esteja lendo ela. Fiquei feliz que você mandou notícias do seu trabalho e que você tá empolgada, fiquei curioso com as ideias tuas que tu pretende colocar em prática e senti bastante saudade. Tenho tentado pensar e esperar um pouco mais pra te escrever, quero ser um pouco menos impulsivo e um pouco mais consciente. Ainda tem sido bastante difícil e muitas vezes ainda me pego pensando em como eu poderia ter sido melhor contigo e pra você e comigo e pra mim e pra nós. Hoje eu li esse reels que te mandei assim que acordei e desandei a chorar pensando em coisas que eu gostaria de ter dito ou ouvido ou pedido e acho que eu nunca consegui deixar claro o quão difícil sempre foi pra mim tentar falar sobre os meus sentimentos e essas coisas, sobre o esforço enorme que isso exige de mim, sobre o quanto eu sempre quis muito fazer isso contigo e sobre o quanto era dolorido pra mim sentir que eu te machucava. 






XX

no fim das contas acho que talvez eu nunca entenda realmente a função das palavras no mundo ou exatamente como as coisas funcionam, dia desses uns amigos do pai colaram aqui em casa e eu fiquei olhando eles conversar e nenhuma coisa fazia muito sentido pra mim. tô relendo um dos meus mangas favoritos de novo e acho que entendo de onde surgiu o meu apreço por loirinhas que pagam de bravas. pelas minhas contas você tá terminando o seu primeiro mês de emprego e acho que gostaria de saber como as coisas vão indo, se você tem se adaptado bem e essas coisas. pelo que eu lembro a tua prova da carteira era por esses dias também, como foi? por aqui as coisas tem ido bem, o pedreiro atrasou a outra obra então ainda não começamos a reforma do banheiro. não aconteceu muita coisa nessa semana por aqui. sinto saudades de te ligar as vezes, mas nas últimas vezes em que falamos senti que tu não queria estar falando comigo e acho que agora que tu mora com o Lucas as chances de tu poder ou querer me ligar são bem baixas e no fim das contas acho que entendo. espero que as coisas estejam bem com vocês e que tu esteja feliz. Luana teve aqui em casa esses dias eu gosto bastante dela e ela é bem esperta e gentil e eu me sinto bastante tranquilo e confortável enquanto a gente conversa e as coisas seguem mais ou menos como sempre foram, de vez em quando eu converso com a Luiza também, agora ela e o namorado são não-namorados e é um pouco engraçado e bastante bonito ouvir as desventuras amorosas dela com juliano e acompanhar os modos como eles tem se organizado pra continuarem juntos, eu fiquei feliz que meu twitter finalmente foi excluído e esses dias desativei o meu facebook também, um pouco surpreendente o quão difícil foi pra mim parar de acompanhar as redes sociais suas e do lucas, acho que meu relacionamento contigo me mostrou muitas partes de mim que eu achei que não existissem e me colocou em muitos papéis onde eu nunca achei que estaria, acho que aos poucos tenho feito as pazes comigo mesmo, com as minhas escolhas e com as consequências delas. esses dias percebi que choro toda a vez em que vejo ou leio ou ouço uma história onde as pessoas confiam umas nas outras. ainda não consegui estruturar muito bem um grupo de amigos por aqui, encontrei o pessoal das antigas algumas vezes mas a galera não se reúne mais com a mesma frequência e acho que a minha vibe destoa um pouco do resto do grupo e acho que isso tem feito um pouco de falta pra mim. semana que vem vou entrar em um grupo de introdução ao teatro pra adultos, vai ser um encontro por semana e me pareceu um bom lugar pra encontrar pessoas com que eu talvez me encaixe melhor. tenho me sentido satisfeito com meus desenhos já  a algum tempo e isso me deixa bastante feliz, aos poucos a gente tem aberto mais espaços na terra e ampliado as áreas de cultivo e é muito bonito ver as coisas se transformando no tempo delas, tô escrevendo um livro ilustrado sobre as pessoas que vivem no mundo onde a Barbarícia mora e acho que vai ser uma leitura divertida pra pais e filhos. meu cabelo cresceu bastante e eu raspei as laterais esses dias e isso meio que deixou todos os meus looks 130% mais punk rocks que eu acho que era uma coisa que tava faltando em mim nos últimos tempos. tô sóbrio a alguns bons meses e tenho gostado da sensação, de vez em quando eu bebo alguma coisa e fumei com os meninos no festival que teve esses dias por aqui mas nada perto da frequência de antigamente, não sei quanto tempo vai durar mas tem sido bom, não muito surpreendentemente o que mais me pega as vezes é a fissura de fumar cigarro. acho que eu e o pai temos nos dado super bem, a gente xinga bastante e essas coisas mas de um jeito bom, o Pedro vai ser professor substituto na ufpel e fiquei bastante feliz por ele, o negócio de aulas do Vicente tem dado certo também e todos os meus amigos estão aparentemente muito bem encaminhados nas suas vidas o que me faz as vezes sentir um pouco mal - não por eles estarem bem mas porque as vezes me sinto meio burro e incapaz - dito isso conversei com meu pai e fiz umas contas e tenho alguns planos que se derem certo em uns seis anos vão me colocar no lugar onde eu mais ou menos sempre quis estar no sentido de tempo e dinheiro e essas coisas. enfim, eu sei que você não gosta de textos longos e sentimentos explícitos e essas coisas mas esse é o meu jeitinho mesmo. fico feliz de ter na minha vida todas as pessoas que tenho e tem uma quantia considerável de pessoas que falam comigo e me chamam pra dar rolê e me fazem companhia e essas coisas e é um pouco engraçado porque são todas as coisas que eu quero e volta e meia me pego pensando sobre o quanto fico feliz em ter todas essas pessoas e coisas na minha vida e o quanto tudo seria mais legal se você estivesse por perto, dia desses eu tava meio triste e fui até a plantação de nogueiras e me deitei embaixo das árvores e fiquei olhando pras nuvens e pras folhas caídas e pros galhos e pros insetos e dormi um pouco e fiquei muito feliz e quis que você tivesse comigo e as vezes eu sinto tantas saudades e as vezes confundo a dor de não ter você por perto com outros sentimentos e as vezes eu me pergunto se você também sente saudades ou se essa é uma coisa que eu sinto sozinho. as vezes meu coração ainda pula uma ou duas batidas quando vejo que você me escreveu e por mais que eu queira muito mais de você na minha vida acho que me contento com o pouco que tenho tido porque pelo que sei de você eu imagino que a vida que você tem agora é a vida que você sempre quis e que eu não tenho condições de viver contigo. te desejo todas as melhores coisas do mundo e muitas coquinhas e tênis novos e strogonoffs e lanches sem salada e segurança e rolês divertidos e noites em motéis e roupas caras e bebidas chiques e viagens internacionais e espero que tu saiba que não importa o que aconteça tu vai sempre ter um camarada em mim e que mesmo que as vezes eu fique maluco e fale coisas feias e ruins e que eu imagine planos malignos eu nunca vou deixar de te amar desse jeitinho esquisito, as vezes malvado e cheio de palavras. te amo de um jeito que só da pra amar você e se um dia tu quiser estar mais perto de mim de novo eu talvez faça um pouco de birra no começo porque sentimentos e pessoas são complexos e sempre vai ter um lugar pra ti na minha vida, nos meus pensamentos e nas minhas emoções. espero que você se cuide e que você se ame e que você seja feliz e que eventualmente as coisas fiquem bem entre você e a sua mãe. te amo do tamanho do conjunto matemático que abrange todos os infinitos matematicamente possíveis e os impossíveis também e espero que tu saiba que apesar de que em alguns momentos eu agi com a intenção de te causar dor ou tristeza eu me arrependi literalmente no instante seguinte e acho que isso aconteceu porque infelizmente alguns aspectos da minha psique infantil acabaram subdesenvolvidos devido a condições complicadas de crescimento.


XXI

Vi a Bárbara pela primeira vez em 2014 e de um jeito ou de outro acabamos ficando amigos de almoço. Por alguns bons anos frequentamos o RU em conjunto e compartilhamos o dia a dia da faculdade. A casa dela era o lugar pra onde eu ia quando precisava de paz e lembro da felicidade que senti quando ela me pediu um cafuné em um dia que tava se sentindo triste. Uma vez ela cuidou de mim bêbado em uma das famigeradas festass do Tigre Branco e a gente dormiu de mãos dadas naquela noite, contei isso pra todos os meus amigos. Nunca vou esquecer da noite em que acordei no sofá dela pra ver ela me cobrindo com uma cobertinha fazendo o máximo de esforço pra não me acordar, fingi que não acordei. 

Em 2018, no sofá da sala dela que eu percebi que queria a Bárbara na minha vida pelo resto da minha vida. Um pouco depois disso eu falei que amava ela pela primeira vez e depois de umas duas semanas de silêncio ela me contou algumas coisas horríveis da própria vida e pediu pra que eu me afastasse. Engoli seco e me afastei, o tempo passou e exceto por um ou outro salve as notícias foram parando de chegar. Até que de repente a gente tava se ligando pelo menos uma vez por semana pra passar oito ou dez horas conversando sem parar. No primeiro de janeiro de 2022 ela escreveu que me amava pela primeira vez, eu tava com meu pai no dia e levantei pra contar pra ele assim que eu vi a mensagem.

Era como se eu fosse um boneco de desenho animado e as palavras dela fossem um rolo compressor passando por cima de mim e me deixando fininho como papel e eu me rendi. Eu nunca quis me defender da Bárbara e matei no peito tudo dela que me atravessava. Algumas coisas nunca sairam do outro lado e outras me perfuraram em lugares importantes. Abandonei algumas certezas, mudei de caminho, aceitei as rédeas e deixei que ela me guiasse. Mas eu cresci selvagem e ser guiado não é fácil pra mim. Confiar não é fácil pra mim. Ela me disse que não confiava em mim e ai a insegurança e o medo arrebentaram as portas e fizeram morada em mim. Dá pra imaginar o que aconteceu depois disso.

Ela me disse que nada ia mudar e de uma noite pra outra eu tava sozinho em um lugar desconhecido e ela tinha desaparecido. Segui ela por um tempo, tentando entender o que tinha acontecido e descobrir como sair do lugar de onde estava. Ela encontrou outra coisa pra cultivar e já não tinha mais cabeça pra lidar comigo. Perdido, sem saber como e sem sequer ter pra onde voltar fiz o que qualquer um faria na minha situação e entrei em desespero. 





XXII

Eu já amei e ainda amo muita gente na minha vida e isso nunca foi segredo. Eu tenho o riso frouxo e trato com muito respeito e carinho todo mundo que dedica tempo e atenção à mim. Fiquei feliz quando ouvi da boca do Arielson que eu sou leal e o meu mundo virou de cabeça pra baixo quando a Bárbara me disse que queria ficar comigo. 

Acho importante dizer que a gente conversa semanalmente desde 2014 e que ela me acompanhou em todos os momentos importantes da minha vida desde então. Independente da distância e das circunstâncias em que nos encontrássemos ela sempre esteve lá. Em almoços, festas, rolês, praças, mensagens de texto, áudios, links e chamadas de vídeo ela nunca deixou de falar comigo. No meu momento mais baixo ela me estendeu a mão e me ajudou a levantar, cuidou dos meus machucados e me incentivou a me curar. Ela me disse como se fosse óbvio milhares de coisas que demorei anos pra perceber e me lembrou de muitos valores que eu tinha perdido. 

Quando tentei beijar ela pela primeira vez ela riu de mim e foi pra casa. Na primeira vez em que ela me disse que me amava eu ignorei porque não lidava muito bem com meus sentimentos ainda. Quando nos beijamos pela primeira vez eu tive certeza do quanto eu queria essa pessoa na minha vida. Quando eu disse que amava ela pela primeira vez ela me deu um pé. Quando a pandemia começou nos procuramos pelas telas pra sobreviver. Quando nos encontramos de novo foram os dez dias mais intensos da minha vida inteira. 

Quando eu recusei da primeira vez em que ela me pediu em namoro brigamos feio e ela seguiu do meu lado. Quando voltei pra casa da minha mãe pra me cuidar ela manteve contato comigo e me ajudou a lidar com as minhas dores. Estive com ela em todas as vezes em que pude me fazer presente. Ela acompanhou a minha indecisão e esperou por mim por quase dois anos. E a gente finalmente começou a namorar.

Gosto de pensar que fomos felizes e que nos divertimos bastante, eu fui e eu me diverti. Acho que a gente curtiu pra caramba tudo que conseguimos curtir. Sei que foi dolorido pra mim e que foi pra ela também. Nos machucamos, nos desconectamos, nos desentendemos e ela me pediu um tempo do namoro que logo se transformou em fim. Eu chorei por todos os motivos possíveis quando ela me contou que decidiu entrar em um relacionamento fechado com outra pessoa. E ela não me abandonou. 

Enquanto eu processava o meu luto e os meus sentimentos com relação a esse final ela permaneceu do meu lado. Ouviu e leu os meus chiliques, as minhas birras, os meus arrependimentos, as minhas desculpas, as minhas reclamações e os meus pensamentos. Me ouviu chorar por todos os motivos possíveis e fez questão de me deixar claro com palavras e ações o quanto queria permanecer na minha vida mesmo que não fossemos namorados e me lembrou que o amor existe pra além dos relacionamentos românticos. 

Demonstrações públicas de afeto são difíceis pra mim e eu não consegui fazer nenhuma grandiosa o suficiente pra fazer jús a Bárbara enquanto namoramos. Escrevi muitas poesias, fiz muitos desenhos, inventei algumas canções e tentei dizer com todas as palavras pra ela sempre que pude o quanto eu fui e sou grato pela presença dela na minha vida e o quanto eu quis e quero que a gente fique juntos pra sempre da maneira que for possível. 

Tentamos namorar e não conseguimos por muito tempo, fico curioso em saber como vamos ser daqui pra frente. Estou certo de que seremos. A Bárbara é um dos maiores presentes que recebi da vida - talvez o maior. E abençoados são todos aqueles pra quem ela se faz presente. 





XXIII - Não respondo mais perguntas que não foram feitas.

Passei uma parte bem grande da minha vida dando explicações. Um hábito familiar. Sinto que sempre tive uma certa ânsia por ser entendido. Demorei muito tempo até perceber que nem todo mundo queria me entender, poucas pessoas querem. Consigo contá-las nos dedos. Isso não me incomoda. 

De tempos em tempos, volto pro Carnê de Baile. Comunicar é impossível e exatamente por isso se faz necessário, ou alguma coisa do tipo. Será que existe alguma língua na qual se entender é mais fácil? As vezes eu penso sobre a Bella de Crepúsculo e em como ela queria ter os próprios pensamentos lidos. Como eu queria poder colocar pra fora o que eu sinto e penso e fazer sentido.

Tenho pensado bastante sobre a proximidade que o sentir tem do sentido. Tenho sido menos incisivo também. Incisões as vezes machucam e nem sempre é no profundo que se encontra o que se procura. A profundidade é superestimada e o raso também tem seu valor. 

Tenho movido sutilmente os lugares onde acredito e duvido. Continuo usando as minhas verdades nos lugares de sempre e venho acolhendo algumas mentiras onde elas parecem caber. Pra mim, o equilíbrio é mais importante do que a virtude. 






Comentários

  1. No trecho xii eu percebi que ia ter que ler esse post ao longo dos dias. Vc me fez perceber que "ajudar horrores" é uma expressão muito interessante de ler lida, normalmente eu só ouço ela e foi divertido ver escrito.

    Se eu fosse corrigir algo, eu colocaria mais virgulas. Talvez não seja sobre isso que vc queira ouvir, mas eu só sei dar feedbacks ortográficos.

    Já me recomendaram Claymore, so que o anime e eu não me interessei muito, mas coloquei na minha lista. Agora, vendo as imagens do mangá, achei divino e talvez eu veja o anime de fato, pra depois ler o mangá. Pelo menos, eu me interessei agora.

    Lendo, eu pensei em como não tenho experiência amorosa nenhuma pra contar história. Uma mistura de alivio com insegurança. Eu gosto desse tipo de escrita dos seus texto. Não sei como chamar, mas é uma história contada e sem cronologia. Não ache que estou comparando, mas a única coisa que eu li nesse sentido foi A Insustentável Leveza do Ser. Então toda vez que eu ver algo nesse rumo, vou lembrar desse livro, mesmo que não pareça em nada.

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  2. Oi Lana, fiquei bastante feliz com esse comentário! Eu e as vírgulas temos uma longa história de excessos e faltas, espero que um dia a gente encontre o equilíbrio hahahaha. Não sei exatamente se eu tinha alguma coisa que eu queria ouvir especificamente mas normalmente eu gosto quando as pessoas tem algo a falar. Achei legal que você pensou em você e nas suas paradas a partir da leitura e não sei muito como são as experiências de vida que não são a minha, mas também sinto uma mistura de alívio com insegurança quando penso nela as vezes hahahaha.

    Ainda não li A Insustentável Leveza do Ser mas sei que é um grande clássico e acho maneiro que de alguma forma a minha escrita tenha lembrado ele, sei que você não tava comparando mas não sou um inimigo das comparações, acho que são um jeito de perceber e diferenciar as coisas sei lá.

    Por fim, eu amo Claymore de mais da conta! O anime é lindo também mas lembro que o final deixou muito a desejar pra mim e foi por isso que eu acabei indo ler o manga que tem um dos finais mais satisfatórios que eu já li, eu amo muito os personagens, os monstros, as lutas, os diálogos e os sentimentos todos que existem no manga e chorei horrores nessa última leitura, eu amo a Clare e a Teresa e a Miria e a Deneve e a Clarice e a Miata!

    P.s.: Eu gosto de como a palavra horrores indica quantidade de um jeito informal de um jeito um pouco esquisito por conta do radical da palavra, também achei engraçado quando escrevi hihihi. Tei tei, é nóis!

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