O objetivo é sempre subjetivo.

Gosto de ler porque gosto de ler e porque ler normalmente me faz pensar. As leituras das quais mais gosto são as que recontextualizam a minha própria vida, minhas próprias experiências e que me fazem pensar sobre as pessoas que sou, fui e que quero ser. Já faz muito tempo que penso em escrever sobre as coisas que leio e acho que faz sentido começar agora. 

Comédia é um gênero difícil pra mim e as vezes imagino que seja difícil pra todo mundo, muitas vezes é mais fácil pra mim rir em um grupo de amigos do que com um show de piadas ou um trabalho de ficção. Tem alguma coisa na falta de espontaneidade do humor elaborado que faz com que a coisa toda perca um pouco da graça pra mim. Gosto bastante de pensar sobre a palavra graça e acho interessante os diferentes contextos em que ela aparece. Como é possível que fazer algo de graça e por graça sejam coisas diferentes? E como é que pode uma única palavra expressar a falta e ao mesmo tempo o inefável do valor? Não sei, o que sei é que gosto de graça, de agir e de viver através dela e de aproveitar sempre que ela me aparece. 



Eu cheguei em Angel Densetsu por conta de um mergulho que comecei a alguns anos em histórias de delinquentes. Li Holyland pela primeira vez ainda antes da graduação e assisti GTO mais ou menos na mesma época. Alguns atrás anos Tokyo Revengers tava em alta, li Bakuon Rettou e quando procurei uma lista de bons quadrinhos japoneses sobre delinquentes encontrei a recomendação de Angel Densetsu, achei as ilustrações de capa bonitas e comecei a leitura. Até ter lido Claymore de novo esses dias eu não tinha percebido que essa foi a primeira serialização do sujeito que escreveu um dos meus mangas favoritos e agora que sei consigo perceber as semelhanças de estilo entre uma história e outra e como essa história de gags influenciou o desenvolvimento de Claymore. 

A pergunta que move o roteiro é simples e eficiente pro tipo de humor absurdo que o quadrinho constrói: como que tem um coração de anjo e o rosto de um monstro viciado em heroína lida com o modo como as pessoas reagem à ele? E o texto aos poucos responde essa pergunta a partir da introdução de um grupo maravilhoso de personagens com  distintas personalidades, objetivos e visões de mundo que vão aos poucos sendo encantados por esse sujeito esquisito, difícil de compreender e complicado de explicar que é o Seiichirou. 



Não é difícil se sentir como um aluno da escola de Hekkiku ouvindo os rumores que cercam o protagonista, quando leio alguns personagens falando sobre ele quase consigo imaginar meu pai, ou algum tio, ou algum vizinho, ou algum colega se referindo a algum "mal encarado" qualquer. Não é difícil conhecer alguém que julga o mundo a partir das aparências, também acho que não é difícil lembrar de um momento onde fizemos o mesmo e em que fomos também julgados pelas próprias aparências. Já tive problema na rua mais de uma vez por conta da mistura entre a minha cara e o modo como me visto. Evitei por um tempo a mulher que viria a ser uma das minhas amigas mais importantes da faculdade porque ela tinha cara de playboy e cansei de ouvir relatos que no fim das contas eram uma mistura de informações entrecortadas, falta de compreensão e preconceito direcionados à pessoas esquisitas. Acho que é muito por isso que não é difícil de se conectar com os personagens e os acontecimentos de Hekiku. 

Os desenhos são divertidos e tem uma maestria muito específica nos quadros de impacto e nos diferentes modos ridiculamente assustadores e bizarros em que o rosto do protagonista é desenhado


Li o primeiro capítulo, depois o segundo e em algum momento, depois de algumas repetições me peguei rindo de todos os desenhos estúpidos da cabeça do Seiichirou e de como o medo das pessoas as vezes faz sentido porque elas não são capazes de entender como ele pensa, o que ele sente e o que de fato ele tá fazendo nos lugares em que aparece. A verdade é que fundamentalmente essa é uma história que de um jeito bastante divertido acabou me levando a pensar bastante sobre mal entendidos e sobre como o lado de fora raramente expressa o lado de dentro. Angel Densetsu não conta com nenhum grande desenvolvimento, nenhum grande arco e nenhuma grande revelação. È uma história cotidiana, sobre assuntos e eventos cotidianos que acontecem com alguns adolescentes de uma escola de ensino médio. Raramente as histórias duram mais do que quatro ou cinco capítulos e a estrutura é bastante episódica. 

Quem me conhece sabe que eu sou um grande fã de histórias de amizade e no fim das contas essa também é uma história sobre isso. O Seiichirou é um menino tímido, bastante constrangido e solitário que encontra conforto na convivência e no dia a dia com seus amigos, não muito diferente de mim na adolescência e mesmo que a minha cara não fosse nem de longe tão assustadora quanto a dele, descobri depois de um tempo que a maior parte dos meus veteranos na faculdade não falava comigo porque aparentemente eu tinha vibe de marginal. Hoje em dia não é infrequente que eu perceba um certo desconforto em uma pessoa ou duas nos lugares onde vou por conta de como me pareço ou como me porto, ontem meu pai me disse que as vezes tem medo de mim e honestamente nem acho que isso seja tão ruim. Acho que tenho aos poucos me acostumado. 



Fiz uma pausa de alguns meses no meio da minha leitura desse quadrinho e quando voltei foi um pouco como se as férias de verão tivessem acabado e eu tivesse voltado pra escola e reencontrado alguns amigos que eu não via a muito tempo. Não sei se tem alguma coisa excepcional em Angel Densetsu e a verdade é que mesmo que não tenha, isso não faz falta nenhuma. Os desenhos são bem executados, as cenas são claras, a iluminação é usada de uma maneira divertida e a diagramação mesmo que pouco inventiva oferece um bom espaço pra uma escolha de recortes que favorece acima de tudo a compreensão das cenas. 



Não sei dizer se Angel Densetsu é bom ou ruim, sei dizer que foi uma leitura agradável, divertida, com algumas boas surpresas e com um tipo muito específico e efetivo de humor recorrente. Ao longo da leitura fui conhecendo e me acostumando com os personagens, sabendo o que esperar deles e as vezes rindo por antecipação ao perceber em quais situações eles estavam sendo colocados. Acho que de algum jeito me lembra um pouco a coisa toda do Chaves e com certeza tá no grupo de leituras que fico feliz em ter feito e uma ótima referência pra quem se interessa pelo simples muito bem executado. 

E completamente não relacionado, é um pouco divertido perceber onde os personagens de Angel Densetsu refletem em alguns personagens de Claymore, tenho a impressão de que a relação entre a Riful e o Dauf é um pouco um "como seria se a Ryoko namorasse o Kuroda" e pra mim a Clare e a Ikuno tem mais ou menos a mesma personalidade. A Miria se parece bastante com o próprio Seiichirou em alguns aspectos e é legal ver como algumas ideias de coreografia de luta que são proeminentes em Claymore aparecem aqui de uma maneira ou outra. 

Enfim Angel Densetsu é um pouco como sair com aquele grupo de amigos que é sempre divertido e engraçado, que sempre acaba te colocando em alguma situação ridiculamente complicada por um motivo ou outro e que tá sempre com você quando alguma coisa precisa ser resolvida. Se você gostar do começo com certeza vai gostar da coisa toda e os últimos capítulos são particularmente bastante divertidos valendo inclusive pra uma menção a um dos poucos capítulos solo do Takehisa onde ele reencontra alguns colegas do passado e percebe o quanto a amizade entre ele e o Seiichirou é importante pra ele. 













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