Eu gosto de como eu quase nunca consigo fazer as coisas na ordem em que eu planejo.

Pensei em adicionar uns parágrafos em uma crônica que comecei escrever a alguns anos e percebi que ela precede a era organizada dos meus documentos digitais. Acabei me distraindo com as pequenas histórias que escrevi depois de começar a me organizar. A bagunça é uma grande amiga do acaso. E eu e o acaso com certeza somos ótimos amigos.

Já faz um tempo que eu venho tentando me dedicar à escrita levando em conta que o material dos quais os textos são feitos é o resultado de um trabalho colaborativo e contínuo executado diariamente por todos os falantes. As palavras me assustam um pouco, séculos de usos e significados amassados em uma sequência de símbolos de fácil reprodução. 

Sempre que uso as palavras tento organiza-las com cuidado e com respeito. A linguagem é um presente precioso que recebemos dos nossos antepassados e que remonta uma história que transparece na escolha das palavras, dos temas, das suas posições e dos entendimentos que surgem a partir dela sempre que ela é usada. E é esse presente vivo, mutante e imaterial que nos permite ser como somos e que dá sentido à nossa existência.

Escrevo, porque sou feito de palavras e através delas coloco no mundo um pouco mais do que existe em mim. Escrevo como quem faz um experimento sem ser capaz de entender por completo o resultado.


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Os pés doíam já a algum tempo, mas não era como se isso importasse. De frente pra imensidão quase nada importa. O corpo não importava. Ninguém esperava em casa. Ninguém sabia onde estava e ninguém ligava pra isso. Ou pelo menos era isso que parecia.

O vento corria solto pelas curvas da terra, contornava o que podia e levava consigo tudo aquilo que se deixava carregar. Sonhava em ser como o vento, se deleitava em seu abraço e se deixava ir na direção que ele apontava. Era pesado de mais para ser carregado.

Conhecia o lugar onde estava tão bem como conhecia o resto do mundo. Voltava porque seguir em frente não fazia mais sentido e precisava ir pra algum lugar. Afinal uma viagem só é de fato viagem quando termina. E essa viagem precisava terminar.

Sedento, mastigava com calma e sentia a garganta umedecer com a carne e o suco da fruta. Racionava tudo. Não sabia quando poderia ter mais de qualquer coisa e sabia que estava longe de onde pretendia chegar.

O olho aberto alternava seu foco entre o longe e o perto. O outro se preparava para o escuro. O sol do alto do céu banhava a terra com sua luz e seu calor. Queimava lentamente a pele e a pele respondia com suor. 

As cordas vocais tremiam. Cantando sobre a grama, a estrada, as árvores e o mar. Entregando ao vento para que ele carregasse as esperanças, os desejos, as tristezas, os desenganos, os sonhos e todo o resto. Na estrada tudo isso pesa muito pra quem anda e o vento leva tudo com carinho. 


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- Hey, vem cá ver meu ritual. - me disse do meio do corredor enquanto me observava com os olhos de alguém que via mais um dia à sua frente. Tinha consigo um baú de madeira, do tamanho das palmas das mãos que o seguravam. Segui.

- o quê? 

- eu vou fazer um ritual agora, quer ver? 

- um ritual de quê? 

- ué, de mágica né! - a descrença e a curiosidade se misturaram no meu rosto, me deu as costas e lentamente caminhamos abraçados até o fim do corredor. Entramos no banheiro. 

- Eu vou jogar isso fora. - A caixa carregava um vício. Não vai me entupir o vaso aí ô porra! - uma voz rouca gritava da cozinha. Eu não acho que dá pra entupir o vaso com isso! - Respondeu a voz bem ao meu lado. 

Um sorriso, um beijo, as tampas, os dedos, os rasgos, o despejo, a descarga. Feito.

- Foram muito bons os momentos que tivemos juntos, agora preciso seguir um caminho diferente. 

- Vai guardar o que na caixinha agora? 

A resposta escapou por um sorriso - Meus remédios. 


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O que vamos comer hoje?

De joelhos, a criatura oferecia a sí própria. Com as entranhas entre os dedos ensanguentados segurava a própria vida. Era este o seu único propósito. Não o fazia necessariamente de bom grado e não havia nada que lhe obrigasse a tal. Exceto, talvez, por si mesma. 

Eu faço qualquer coisa por você! Anda! Pega logo! Isso é tudo que eu tenho!

Um rosto imóvel aceitava a oferenda. Lambia as entranhas, sugava-lhe o sangue da ponta dos dedos como de costume. Deixava-se ver por entre frestas da cortina. 

O que foi? Não é o suficiente pra você?

Lambendo a própria boca o rosto respondia. Era mais do que o suficiente e não era o que ele queria. Era apenas o que tinha pra hoje.


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Sem dúvida alguma era um dependente. Sempre entendeu sua força e nunca negou a própria fraqueza. Reconheceu as próprias virtudes e nunca deixou de considerar os próprios vícios. Demorou à perceber que o equilíbrio além de dinâmico é também uma questão de perspectiva. 

Dependia de todas as coisas que se faziam necessárias para a própria existência e fazia qualquer coisa em nome delas. Comida, abrigo, educação, conhecimento, carinho, amizade, respeito, alegria, lazer, amor. Sabendo que a vida levava a morte sentia o tempo escorrendo pela pele e caminhava em seus sentidos sempre tão lentamente quanto lhe era possível.

Viciado na própria existência, fazia sem prazer o necessário pela manutenção da própria continuidade e vivia.

Entregue ao vício esperava com pavor a própria morte.


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Não sei se era o ângulo, o tamanho ou a expressão que compunham. Mas algo ali me atravessava profundamente. Jogava o tempo pela janela e me observava por uma eternidade inteira. Percorria dimensões de mim que eu sequer percebia. Me faziam sentir na pele aquilo que me percebia. Sublime.

Comentários

  1. Estimado Jacson!!Fiquei encantada com o uso delicado e amoroso que tens com as palavras.Teus textos são incríveis. Um abraço fraterno!!Da ex profe Josiane.

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    1. Aaaaa, fico muito lisonjeado pelas palavras ^^
      vindo de uma pessoa tão importante como fostes no meu processo de aprendizado elas significam muito! Abraço profe :D

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