Eu estou escrevendo esse conto faz uns dias e ele ainda não tem um nome.

Eu sou levemente enrolão no que tange colocar as coisas que eu faço na rede mundial de computadores. E passei um tempo pensando que queria fazer ao menos uma ilustração ou duas pra esse conto antes de colocar aqui. Depois de perceber que eu não tinha ao menos pensado em um rascunho enquanto o tempo passava percebi que eu provavelmente ia acabar não fazendo nada se continuasse esperando. Essa é a quarta versão desse texto e provavelmente não é a última ainda, mas acho que já está pronto o suficiente pra sair um pouco dos escombros dos meus arquivos.


Era o fim de tarde de mais uma quarta feira e seu Zé sentava em frente a sua casa enquanto observava o seu quase glorioso jardim. A grama verde e cintilante era exatamente igual a que a gente imagina quando pensa nas palavras grama, verde e cintilante ao mesmo tempo. Sobre ela, vasos de variados tamanhos e formatos continham flores de todos os tipos e cores, organizadas em arranjos coloridos e harmoniosos que, se não fosse por algumas flores, folhas e pétalas faltando aqui ou acolá seriam exatamente do jeito que seu Zé imaginara. O mesmo podia-se dizer da horta circular, abundante em legumes, verduras, formas, cores e mordidas de lesmas. As árvores - que circundavam o jardim e formavam uma bela clareira - eram altas, cheias de galhos, flores, frutos e assim como o resto do jardim, mordidas de lesmas.

Seu Zé já havia tentado quase tudo o que sabia, o que lhe falaram e o que ele imaginara que poderia funcionar para se livrar das lesmas: cerca, alho, reza, choro, grito, casca de ovo em cima de palito, nada adiantava. Algum vizinho lhe havia sugerido sal ou veneno, para resolver o problema de uma vez por todas e nessa semana ele havia decidido que o faria. Já estava cansado de ter o seu jardim atacado e não conseguia imaginar uma solução não letal que já não tivesse tentado. E foi exatamente por isso, que a cena que se seguiu o surprendeu ainda mais do que já o teria surpreendido em um dia comum.

Enquanto Seu Zé se distraira pensando em como seria a vida no jardim após o fim de suas inimigas gosmentas, um sem fim de lesmas o havia cercado, todas portando pequenos objetos que ele desconhecia. A vista imobilizou seu corpo, milhares de coisas passavam pela sua cabeça enquanto um calafrio descia por sua espinha. Será que as lesmas haviam descoberto o seu plano de envenená-las? Será que haviam decidido dar cabo dele antes que ele pudesse acabar com elas? O mar de lesmas à sua volta o encurralava, não havia jeito sequer de levantar sem entrar em contato direto com suas inimigas, ele nunca imaginara que as lesmas poderiam ser capazes de se organizar de tal forma e não fazia ideia do que elas poderiam ter planejado para esta tarde. Restava esperar.Pequenos tambores soavam entre as fileiras de lesma que o cercavam e nem mesmo o vento ousava se mover.

Uma das lesmas, com o que parecia ser uma peruca encaracolada, se postou exatamente a frente de seu Zé, abaixou sua cabeça - como que em um ato de reverência - e deu de costas. Com apenas um gesto silenciou os tambores e tudo mais que pudesse soar ao redor. O silêncio permaneceu por tanto tempo quanto era necessário para antecipar o que viria a seguir.

Num rompante que encheu o jardim, as lesmas iniciaram uma melodia diferente de tudo que seu Zé já tinha ouvido. Os pequenos instrumentos, feitos com madeiras, folhas, galhos, teias de aranha e tudo o mais que as lesmas costumam coletar por ai produziam sons que se misturavam entre sim e com o farfalhar das árvores sob o vento. No alto dos galhos, lesmas coloridas cantavam como cantam as lesmas - sem nenhuma palavra que qualquer humano poderia entender - mas com uma paixão e um carinho que qualquer criatura que as pudesse ouvir entenderia do que se tratava.

Acontece que as lesmas não tinham o mesmo entendimento das coisas que Seu Zé. Para elas, ele era uma benção da natureza, um gigante um pouco menos gosmento, capaz de organizar e fazer surgir vida em meio à terra, que fazia diversos cânticos em entonações que elas não conhecia e construia lindas esculturas com cascas de ovo, fios e palanques. Era por essa convivência e gentileza que as lesmas agora tocavam em agradecimento. Fora graças ao seu Zé que tiveram tempo para o treinamento e para a preparação da orquestra, e agora mostravam a ele tudo o que haviam se dedicado para aprender.

Por mais de uma hora o ar do jardim se enchera de sons de agradecimento e felicidade. Seu Zé, antes paralisado pela dúvida agora não ousava se mover, temendo fazer qualquer barulho que o impedisse de ouvir a música que as lesmas faziam.

Quando o concerto acabou, seu Zé estava em prantos, chorando um pouco daquele choro que choramos quando percebemos que uma situação que parecia ruim era na verdade muito melhor do que esperávamos e assumimos para nós mesmos que estavamos completamente enganados. As lesmas se despediram e seu Zé voltou para casa. O veneno que havia sido comprado foi devolvido.

A vida seguiu como sempre, o jardim continuava como sempre. Quem havia mudado era o seu Zé, que agora, apreciava o jardim como nunca.

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