Eu acho difícil de mais escrever título.


Eu encomendei um boneco de crochê com a Luiziquinha. Enquanto ele não chegava eu acabei pensando muito no Saturno devorando um de seus filhos do Goya - a pintura que inspirou tanto o boneco quanto a minha encomenda dele. Depois disso, pensei no Saturno e na sua contraparte grega, Cronos. Em algum momento surgiu o Saturno brincando com a comida. Ele veio a ser numa mistura de acaso e intenção que me ensinou muito sobre o meu processo de escrita e sobre como eu gosto de escrever. O conto começa depois desse parágrafo e eu não acho que tenho muita coisa pra escrever além disso.

Saturno brincando com a comida.

Carlos nasceu fadado à morte, como nasceram todas as coisas de seu tempo. Tinha consciência disso desde quando era capaz de lembrar. Sabia que tudo tinha uma vida e que toda a vida tinha um mesmo fim. Seu irmão morreu quando ele tinha cinco anos. Seu pai quando ele tinha quinze. Sua mãe quando ele tinha trinta e cinco. Ele sabia que iria morrer e isso lhe atormentava.
Era incapaz esquecer a morte. Quando viu o primeiro filho nascer, se pegou pensando sobre como ele morreria. Para ele, todo começo era uma lembrança do fim. Animais, plantas, ideias, culturas, estrelas, planetas, fungos, sociedades e tudo o que veio antes, assim como tudo o que viria depois. Enquanto houvesse vida, haveria morte. 
A cada morte, uma coisa nova nascia. Para cada grande império que caiu, diversas comunidades e nações surgiram em seu lugar. Para cada ideia abandonada ao longo do percurso do pensamento humano mil vieram a tona. Para cada novo fim havia um novo começo. E eu.
Ainda assim, o seu fim que lhe assombrava. O mundo onde Carlos nascera morreu um pouco antes de ele entrar na vida adulta, mas ele só percebeu isso alguns anos depois. O fim de um mundo nem sempre é repentino, ou fácil de se ver. O mundo novo era quase, mas não exatamente o igual ao anterior. Era mais duro, mais seco, mais longo, mais frio, mais instável, mais quente, mais cheio, mais violento, mais confortável, menos animado e muito mais preocupado em ser o único do que com qualquer outra coisa. Carlos ressentia o velho mundo por ter acabado e o mundo novo por se recusar a acabar. Não que seu ressentimento importasse de alguma coisa, nesse mundo quase nada importa, nem pro mundo e nem pra ninguém.
Quando buscava a ajuda dos gestores do mundo,  encontrava neles sorrisos otimistas, pedidos de calma e uma surpreendente incapacidade de sequer ouvir quais eram os seus problemas. Lhe diziam que o mundo era bom, que de fato nunca estivera melhor e que continuaria melhorando. Só não lhe diziam para quem. Segundo eles o melhor a se fazer era esperar. Carlos sabia que iria morrer.
A vida oferecida pelos gestores era uma vida de segurança, sem imprevistos e sem mudanças. Uma vida de certezas e dias iguais. As únicas coisas que os gestores pediam em troca eram tempo e confiança. Investiam o tempo nas obras do mundo e na solidificação de seus ideais, enquanto usavam da confiança para moldar as memórias e os sonhos de seus habitantes. Essa estrutura garantia a manutenção dos anseios que forjaram o novo mundo e com isso, assegurava a continuação dessa vida coletiva. 
O novo mundo assegurava a sua própria segurança desmantelando e assimilando ou destruindo tudo aquilo que teme. Assumia várias faces e mostrava apenas as necessárias, somente quando necessárias.  
Era preciso atenção para se ver através do disfarce. Carlos o fez aos quarenta e sete anos - quando olhou a morte nos olhos pela primeira vez. A vira em uma fresta entre as faces do novo mundo. Nas marcas que ela deixou. Na falta que ela trouxe. No espaço que ela continha. Era visível nas construções, nas florestas, nas montanhas, nos mares e em tudo o mais que guarda memória. 
O mundo se disfarçava de sí mesmo e escondia suas fronteiras. Ao enxergar além do novo mundo Carlos viu um sem fim de outras coisas, cheias de outras pessoas, outras formas, outras vidas e outras mortes. Carlos lembrava a morte. Imaginava. Morreria mesmo que não quisesse. Escolheu como viveria.
Me surpreendi quando ele sentou ao meu lado, mesmo quem me percebe não costuma ser muito amigável comigo. Carlos me agradeceu pela companhia e lembramos juntos de sua vida. Lembrei sua morte. Devorei seus restos. Permaneci.

P.s.: se você leu até aqui, eu ia gostar de mais de saber como foi a leitura pra você. Mas entendo caso não queira escrever.

Comentários

  1. essa é a primeira vez que comento por aqui, e a sua escrita é tão boa, eu tô lendo alguns posts antigos e tô apaixonada por esse blog.

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    1. Aaaa que legal que cê curtiu, eu nunca sei muito bem como responder comentários, mas fico feliz real com as interações. é nóis ^^

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    2. Viva, viva aquilo que te realiza e te satisfaz enquanto estiver vivo! Depois é depois, não sei...

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